Precisamos falar sobre Hardin Scott

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Depois que li a série After comecei a procurar resenhas que falavam sobre os livros e avaliações de outros leitores – antes até de procurar ler a visão da autora Anna Todd. Queria entender o que os leitores como eu haviam apreendido da narrativa. Como toda obra que faz sucesso, After ganhou torcida dos dois lados: os que amam e os que odeiam. Pela minha breve pesquisa pude perceber que os amam são maioria, até porque dedicam mais tempo para conversar sobre o assunto. Dentre os que odeiam, noventa por cento diziam odiar por um mesmo motivo: Hardin Scott e o relacionamento Hessa são abusivos.

Comecei a escrever análises dos personagens e não passei ilesa a este apontamento. "Hardin Scott é abusivo", "É absurdo as pessoas serem incentivadas a ler After", e por aí vai. Depois do último texto que escrevi sobre o desabrochar da feminilidade de Tessa Young despertada (também) por Hardin, houveram pedidos pelas Redes Sociais para falar sobre como é possível um final feliz em um relacionamento rotulado "tóxico" como o deles.

Vamos lá. Em primeiro lugar, para opinar, acho essencial ler os 6 livros da série. Sim, os 5 After e o Before (a história de Hardin antes da Tessa). Essencial. Leu? Então vamos conversar. Não leu? Para por aqui para não tomar um spoiler e para que consiga compreender os argumentos que serão postos a seguir.

Hardin Scott tem um passado.

Sim, os fins justificam os meios. As escolhas que fazemos na vida nem sempre são conscientes. Há escolhas inconscientes que nos mantém no lugar errado, mesmo a gente entendendo que é o pior. O processo de análise é justamente pra isso. Anna Todd tem o cuidado de recorrer a estes pontos de angústia do personagem sempre, para explicar minimamente o seu mau comportamento. Não estou dizendo que o ciúme excessivo e o controle que Hardin TENTA fazer sobre Tessa são a "melhor forma de se relacionar" – até porque não existe o "relacionamento ideal", mas falta a Hardin o referencial de um relacionamento. Ele não sabe o que é machucar as pessoas até se importar com alguém e entender o que é ser machucado. Hardin é violentado pela vida, pela ausência fraterna dos pais. O significante "fraternidade" é inclusive o local que ele vai se alojar, onde também não encontrará um lar.

Hardin encontra-se na sua neurose obsessiva (não como patologia, mas como estrutura clínica) e faz o sintoma de não admitir perder nada, por isso não se relacionava com ninguém. É o medo de perder que faz dele refém de Tessa. Sim, no meu ponto de vista é ele quem está bem mais fragilizado na relação com a amada.

A neurose obsessiva mereceu um estudo muito amplo por parte da psicanálise. Antes, pela psiquiatria, era chamada de 'mania sem delírio' e a 'loucura da dúvida'. Em linhas gerais, Sigmund Freud afirmou em 1986, que a neurose obsessiva teria como pano de fundo, um evento que "proporcionou prazer". Ao propor essa inovação, o psicanalista afirma que um excesso de prazer é experimentado pelo neurótico obsessivo no seu encontro com a atividade sexual na infância, e que tal vivência lhe impõe culpa e autorrecriminação. Qualquer semelhança com a história de Hardin Scott é mera coincidência (ou não?).

Portanto, meus caros, considero sim um absurdo, a leitura superficial de After. É claro que, a grosso modo, o ciúme excessivo é patológico. E tóxico. Mas basta "ouvir a voz" de Hardin Scott a partir do segundo livro para compreender que o vilão da história era ele contra ele mesmo.

Não subestimem a força de Tessa Young.

Dizer que o relacionamento deles é abusivo pura e simplesmente, é dizer, sem querer, que Tessa é submissa a Hardin e que não tem poder de decisão. Ela tem escolhas e as faz muito bem no momento em que se depara com o real da mulher. (Se você não leu o texto sobre a feminilidade de Tessa, clique aqui para ler). Não é possível desprezar o sofrimento da personagem no relacionamento. É claro que ela sofre. E muito. Mas manter-se neste relacionamento é também uma escolha inconsciente dela, por vários outros motivos (alguns já até discutidos no texto Hardin Scott no divã). A medida em que ela vai tomando consciência das suas escolhas, consegue se afastar e identificar que aquele problema que ela partilhava era de Hardin. O relacionamento deles dá certo depois que ele se trata. Não ela. Portanto, se fosse para dizer o que é demasiado excesso no casal Hessa, esse seria o amor. Ele a prende a Hardin. Quando a relação começa a ser guiada também pela razão, para além da emoção, ela passa a mudar para que a patologia dele entre em cena.

Anna Todd disse em uma entrevista que ela se identificava mais com Hardin do que com Tessa. E claro, é de Hardin que esse livro trata. É sobre ele e sobre o amor. A escrita de Anna, como de qualquer outro autor, é sobre ela mesma, sobre os seus medos e seu amadurecimento em relação ao outro. Portanto há uma força e um recado bem claros a serem passados aqui: há atitudes erradas e raivas que só machucam a quem as sente. E esta pessoa precisa de ajuda. Quantas pessoas perdemos no mundo por não serem compreendidas, por só fazerem escolhas erradas? After é um importante alerta de que precisamos conversar sobre essas pessoas que não sabem amar, pois nunca aprenderam isso. Apontar o dedo para dizer sobre o sintoma do outro é apenas recriminá-lo sobre o que ele mesmo não se dá conta. E a arte tem justamente este papel, o de levantar questões que precisam ser debatidas. É melhor elas serem discutidas pela literatura do que por vítimas da vida real, concordam?

Descriminar After pelo viés "abusivo" é como rotular a literatura que aborda o suicídio como tabu. Quantas vítimas são necessárias para gente tentar começar a debater sobre o tema?

E é possível final feliz de verdade?

Claro que trata-se de uma narrativa dentro de um contexto romântico, mas quando as escolhas inconscientes passam a ser conscientes (da emoção para a razão, a grosso modo), um trabalho passa a ser possível.

Enxergar a patologia e trazer para a consciência escolhas inconscientes (mesmo a de infância de Hardin, por exemplo), a possibilidade de mudança passa a ser vista. Quem ler o 1o e o 5o livro da série verá personagens distintos. Não é nada 'da água para o vinho' ou 'mudança milagrosa', mas é possível enxergar duas pessoas amadurecidas de uma relação que antes só era guiada pelo amor em seu excesso.

O recado de Anna Todd ao final, para mim, é apenas um: amem, mas amem com reponsabilidade. E é realmente uma pena quem não consegue apreender esta mensagem. Se for para ser uma leitura superficial de After, eu realmente não recomendo a ninguém, mas se for para compreender em sua essência, de que somos fadados a escolhas ruins pelo nosso passado – e que é possível alterar o seu percurso, esse livro tem muito a nos ensinar sobre a vida.


After no divãOnde histórias criam vida. Descubra agora