Uma História de Dormir

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 Era uma vez uma menina, a avó, o pai e a mãe da menina

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 Era uma vez uma menina, a avó, o pai e a mãe da menina.

A menina e a avó moravam numa casa muito suja. Era isso que o pai da menina dizia depois de deslizar a ponta do dedo pelo tampo dos móveis, traçando um risco escuro sobre a camada branca de poeira, para justificar seu ponto: a avó da menina precisava de uma faxineira nova, precisava jogar muita coisa fora, se mudar para uma casa menor, adquirir hábitos de higiene mais rigorosos, largar a bebida, largar aquele careca que ela conhecera no bar e que aparecia na porta da casa com um buquê de rosas vermelhas, uma garrafa de vinho e um discurso ensaiado para pedir mais dinheiro emprestado, assim como ela devia largar o gringo taxista, o velhote narigudo dono do antiquário lá de Copacabana, o cardiologista com cara de sharpei, aquele amigo do sogro dele, aquele outro viciado em carteado que dizia que era empresário.

A menina não entendia porque o pai e a avó brigavam tanto.

Qual era o problema da avó ser amada por tantos homens? Qual era o problema das bebidas que deixavam a avó tão feliz? Qual era o problema da tia Marli não conseguir limpar a casa toda? Ninguém se importava com aquela poeirinha em cima da estante...

A menina também não entendia porque o pai raramente a visitava. Seria por causa da casa? Um belo dia, ele apareceu disposto a arrumar tudo sozinho. Curiosamente, começou pelo revisteiro que ficava ao lado da lareira da sala de estar. Rasgou os livros de páginas amarelas acumulados com tanto apreço ao longo dos anos 80 e 90; derrubou no chão os porta-retratos vazios enfileirados no aparador, registro de uma família de fantasmas, e arremessou os bibelôs desbotados e gordurosos contra as paredes. A menina ficou atrás de uma poltrona, observando. Aquela fúria. Aquele ódio invocado contra objetos banais. Por que eles mereciam tanta atenção do pai?

Cansado de destruir a sala de estar, o pai da menina se ajoelhou no piso de tacos. Seu corpo grande e curvado debilmente, perdido num labirinto de coisas insignificantes. A menina o ouviu grunhir e soluçar. E a sensibilidade infantil fez com que ela se aproximasse. Acreditava no poder curativo dos abraços. Entretanto, ao ver a menina, o pai recuperou sua postura altiva, endureceu o rosto e se levantou. Afagou o cabelo da filha com certa brutalidade como se ela fosse um rottweiler e não uma criança de seis anos. Xingou a avó da menina e partiu.

O choro fino fez a avó descer as escadas. Primeiro a menina viu os pés descalços, as unhas curtas pintadas de branco perolado, bandaids sobre a pele fina e rosada dos calcanhares. Se agarrou às pernas ossudas, à seda do robe mal amarrado, ao cheiro peculiar de cigarro e álcool e flor de laranjeira. Na mesinha de centro, a avó apoiou o copo com whisky puro — anos depois a menina descobriria que chamavam de cowboy — sentou-se na poltrona, convidando a neta para subir em seu colo.

— O que o feioso do seu pai fez para você ficar assim? Fala para a vovó.

— Ele chamou você de piranha e depois de burra e de porca.

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