Você já viu MESMO a chuva?"

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Entro no escritório do General Myers e vejo meu avô de costas, olhando um pássaro amarelo que come alguns pequenos grãos na borda da sua enorme janela. Aproximo-me dele sem fazer muito barulho, desejando que ele sinta a minha presença, sem, no entanto, tirá-lo do seu momento de contemplação.

Observo os movimentos dos dedos que sobem e descem em uma cadência rítmica e constante, como se ele estivesse realmente em transe. Tento entrar em sua sintonia e começo a respirar suavemente com ele, absorvendo o ar nos mesmos segundos e expulsando completamente nos segundos seguintes. Sigo neste movimento até encontrar um portal luminoso nos arabescos da grande janela. Consigo ver o que os meus olhos se negam a enxergar, é a visão de Gateheaven, encrustada na parede pálida da mansão dos Myers, a visão do paraíso, que sempre esteve ali, esperando por mim.

Vejo mamãe chegar pelo outro lado da janela, sua imagem se confunde com a de uma Santa, uma muito linda e hippie, cheia de vida e com uma luz tão forte que me custa focar nos detalhes do seu rosto.

Minha Deusa toma forma e ganha movimentos próprios, como se pudesse bailar em pleno dia santo, no refúgio que domina minha alma, em um espaço dominado por líquidos em todos os lados.

Escuto pela primeira vez sua voz doce e serena:

- Minha filha, minha "Lua", peço perdão por ter partido tão cedo. Peço perdão por ter te feito com essa forma que você tanto repudiou. Perdão, Lua...

- Mãe! Eu te perdoo! Como eu te busquei! Como precisava de você...

- Lua, você precisava da verdade, não de mim. E a verdade é que você nunca teve um corpo completo, e eu nunca fui completa na minha alma, sempre busquei algo para me sentir plena. A "verdade" é que você sempre foi muito amada e que eu e seu pai sempre buscamos o melhor para você! Mas a vida nos trouxe até uma bifurcação em que eu tive que partir e você ficou. Gateheaven é a minha casa, mas não é a sua nem a casa do papai. Peço que você vá embora para sempre e que leve o General Myers com você.

- Mas mãe... eu não quero ir! Eu quero ficar aqui, com você!

- Lua, você agora é mãe e tem que cuidar do João, que te espera aí, do lado da Terra.

Penso por alguns segundos no filho que eu deixei em Gateheaven, do meu John, que foi concebido em "Sunset Dream", que nasceu na beira do "Wishes River " e que cresceu na "Oat Honey". O meu John não pode ficar aqui!

- Mas e quanto ao Jason? E o John, meu filho? E o meu Peter??

- Lua, o que pertence a Gateheaven deve ficar aqui, em Gateheaven. E eu vou ficar com eles, não se preocupe. Vou cuidar bem da família que você deixou aqui. Agora você deve ir embora.

Vejo meu avô se levantar da cadeira que conforta seu corpo cansado e olhar-me com ternura. Ele beija a minha testa e sorri contente. Retribuo o sorriso e volto minha atenção para minha mãe, que está ficando cada vez mais luminosa.

- Mãe, você está indo embora? - lágrimas providenciais saem dos meus olhos claros em direção ao chão frio do escritório que presencia a cena da despedida. Não quero vê-la partir sem antes abraçar seu corpo dourado, aquele que gerou a minha vida e que eu busquei tanto...

- Lua, não sou mais matéria. Sou uma energia que se espante para outras alvoradas; posso tocar seu corpo com o calor do meu amor, irradiar paz para o seu coração e fazer ventilar ar nos seus pulmões. Posso dar-te luz em forma de vibrações, ser o anjo que bate as asas no toque de recolher e o mesmo que te abençoa na hora de levantar. Posso sussurrar os palpites para o melhor caminho a seguir, posso ajudar a encontrar razão nas escolhas feitas pelo seu coração e posso abrandar seu ego quando ele ficar maior que a sua felicidade. Posso ser essa inspiração que te acompanhará para sempre, enquanto você quiser. Posso ser a imensidão da eternidade e ampliar na sua memória, o tempo passado que limitamos com singelos e obsoletos segundos. Posso fazer chover em plena tarde de sol, sempre que você olhar para o horizonte. Aliás, você já viu a chuva? Já viu como ela cai forte em algumas tardes de sol? Então, essa sou eu chamando a sua atenção...

Aceito suas palavras mágicas e me despeço mais uma vez da minha mãe-hippie. Peço as bênçãos para seguir meu novo rumo, em um novo corpo que me foi dado de presente e sigo de volta para Belo Horizonte, para os braços do meu novo filho e da vida que eu escolhi.

Gateheaven (Finalizada)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora