Existe alguém para acreditar em mim?

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Depois da tempestade sempre vem a bonança, pelo menos é o que diz o antigo provérbio, mas a minha bonança parece estar longe de chegar. Mesmo aqui, em Gateheaven, não consigo encontrar paz! Sinto como se algo ainda não estivesse completo, como se eu ainda precisasse desvendar os segredos do meu passado. E ele está tão, tão empoeirado que não consigo enxergar por onde começar.

A única verdade é que eu nunca, nunca mais quero chegar perto daquela cadeira de rodas... da cadeira que me aprisionou e que destruiu a minha vida! Se hoje eu caminho por esses campos verdes de Gateheaven é porque eu fui merecedora, porque eu busquei essa vitória para mim. Eu construí esse santuário e ninguém vai conseguir tirá-lo de mim...

***

Vou até a lanchonete do posto encontrar-me com o Jason, mas ele não está lá. A Juliet, que está no seu lugar habitual, no caixa, me vê entrando e abre um amplo sorriso. Neste momento, escutamos um forte barulho de carro derrapando e corremos para ver o que aconteceu. Era o Sr. Wilson, mais uma vez bêbado, que freiou bruscamente, deixando cair todos os ramos de alface do seu humilde caminhãozinho. Quem geralmente faz este serviço é o Jason, mas, por conta da proximidade com o nosso casamento, o Sr. Wilson concordou em levar as hortaliças para a Sra Louise.

Depois que percebemos que se tratava de mais um acidente cotidiano, provocado por um velho alcoólatra descuidado, Juliet me pede para supervisionar o caixa, enquanto ajuda o Sr. Wilson com o carregamento que ocupava toda a extensão da avenida.

Eu vou em passos lentos até o caixa, com um medo enorme da menina que se esconde atrás da cortina laranja com flores brancas. Um vento, que entra pela porta principal, balança o fino tecido em forma de ondas suaves fazendo com que o movimento revele indiscretamente parte do rosto deformado da pequena Janete. Vejo suas verrugas horrorosas e sua testa absurdamente grande para o tamanho da face; os olhos estão mais separados que o normal e metade do rosto parece estar esticado para cima, enquanto o outro lado puxa sua expressão vertiginosamente para baixo. Me assusto com a cena que vejo e tento disfarçar meu enjeitamento à pequena deformada. Ela resolve abrir a cortina de uma vez por todas e me revela o seu temido rosto, aquele que sua mãe esconde há anos de todos em Gateheaven... o rosto do demônio, da criatura odiosa que percorre os caminhos da monotonia sem ninguém para acompanhá-la em sua dor, em seu martírio chamado vida.

- Então esse é o seu rosto? - pergunto ressabiada.

- Sim, esse é o meu rosto feio, moça. Este é o meu rosto que minha mãe tenta esconder de você desde que você chegou aqui.

- E por que sua mãe tenta escondê-lo de mim? - pergunto aturdida.

- Porque a mamãe não quer que você saiba a verdade... porque a verdade vai fazer doer, e porque você não quer sentir dor do lado de cá.

- Não estou entendendo, Janet. O que você quer dizer?

- Eu quero dizer que a mamãe não quer que você saiba... - nesse momento uma furiosa Sra Louise entra na lanchonete e faz com que a menina se cale imediatamente.

- Pare de falar, Janete! Você não sabe o que está falando! E você, "Luanna Myers de Gateheaven", pode ir embora. Seu Jason não está aqui e não há mais nenhuma revelação a ser feita!

- E por que não posso saber sobre o resto da história, Sra. Louise? Por que eu não posso conversar com a minha futura cunhada, sua filha? Por que existe tanto mistério aqui em Gateheaven???

- Porque foi assim que você desenhou este lugar. Para ser um lugar de felicidade, lembra? Você não permitiu que nada atrapalhasse a sua plena alegria enquanto vivesse aqui. Nós estamos cumprindo ordens, Srta Myers. As suas ordens.

- Então, eh... se sou eu quem manda, eu quero saber o que está acontecendo! Quero que todos os segredos sejam revelados! Agora!

Em fração de segundos o teto da lanchonete começa a desabar e muita água corre pelas frestas abertas; em segundos a lanchonete fica inundada e a água começa a virar um rio turbulento e irrequieto. As luzes se apagam e, enquanto sou jogada para dentro da salinha onde fica a Janete, tento me segurar nela. Vejo seu rosto deformado se transformar em um rosto "normal", sem as enormes bochechas e o aspecto desfigurado. Ela se parece com... se parece com a Janete que eu conhecia quando era pequena! Não! Ela é a Janete!

Em alguns segundos, os segredos que estavam escondidos no porão da minha mente são revelados e meu passado é mostrado em detalhes para que eu não tenha dúvidas. Mamãe morreu afogada em um grave acidente na Ranch Rd 620, em cima do Rio Colorado. Não estávamos passeando com a família, em um domingo "feliz". Estávamos fugindo para viver uma nova vida ao lado do amor da vida da mamãe, a Louise. Eu estava no banco de trás do carro com a Janete, a filha linda e perfeita da Louise. Janete se tornaria a minha irmã de consideração e nós viveríamos uma vida nova, da forma como a mamãe havia idealizado.

Papai não estava no carro, ele não sabia que a mamãe havia fugido... Como era um homem violento, ele jamais a deixaria ir embora. Ele sabia que a Louise era o amor da vida dela e já havia determinado que voltaríamos a viver no Brasil, para afastá-la dessa "doença", como ele mesmo costumava dizer.

Mamãe abraçou a morte, juntamente com a Louise e a filha dela, Janete. As três morreram por afogamento, depois que o carro despencou no Rio Colorado. Eu fui "cuspida" do carro no momento do choque e consegui sair viva.

Viva, paralítica e infeliz para sempre.

Gateheaven (Finalizada)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora