Viajantes na Tempestade

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Acordo no meio da noite com o chamado da minha mãe ecoando pela janela do meu quarto. Levanto-me imediatamente, abro as enormes janelas de madeira com frestas brancas e me debruço para baixo na esperança de enxergá-la. Vejo parte de sua saia rodada se escondendo atrás dos arbustos. Eu grito seu nome, mas ela não se mexe.

Resolvo sair atrás dessa imagem e tentar localizá-la antes que ela se vá. Não a encontro, mas uma flor preta feita de pano com tiras vermelhas e verdes está caída atrás do arbusto onde ela estava. Mamãe gosta de usar roupas bem hippies, com saias compridas e cheias de bordados. Tudo o que veste é confeccionado pelas amigas e tudo o que come vem do reino vegetal. Ela é uma pessoa encantada, que vive em um vale próprio, cheio de unicórnios e peixes dourados. A sua riqueza são as suas amigas, as fiéis companheiras de Trycia Myers...

Fico com a flor negra na intenção de que me dê sorte no meu casamento. Acho que poderia até mesmo bordá-la no meu vestido para ter minha mãe perto de mim no dia do meu casamento. Adormeço novamente, agora em posição fetal, como se buscasse o consolo do útero da minha mãe, em uma época em que tudo era aconchegante e terno. Sou acordada pelo barulho do motor da máquina de cortar grama; o Sr.Philip está aparando a grama para o nosso casamento. Ele é um senhor bem velhinho, magro e careca, que faz as funções de vigia, jardineiro, trocador de lâmpadas e segurança. Sua casa é uma pequena cabana localizada nos fundos do terreno de 30.000 metros quadrados, bem ao lado da nossa pequena capela.

Há tempos não vou à capela e não consigo imaginá-la enfeitada para o nosso casamento! Uma curiosidade arrebatadora me consome e não consigo evitar uma passada por lá... Vou caminhando com Peter em passos largos até a grande árvore do riacho. Paro por ali e fico alguns instantes contemplando a beleza que é a minha casa... um passarinho amarelo começa a cantar uma canção singela para mim, como se me cumprimentasse pelo casamento que se aproxima. Admiro a cena e me enterneço com o pequeno ser amarelo quando, de repente, um gavião enorme e preto se aproxima do pequeno loiro e o devora com um só golpe. Tudo acontece muito rápido e eu não tenho reação alguma. Fico ali, parada, pensando na morte abrupta do pobre pequeno e em o quanto a vida é frágil...

Em Gateheaven não costumam acontecer coisas assim.... mortes não são comuns por aqui, aliás, elas praticamente inexistem por esses lados. Vou até a Capela na esperança de encontrar algum alento para a cena horrível que acabei de presenciar... ao chegar vejo uma lápide quebrada embaixo de uma árvore apodrecida. Tento ler o nome da pobre alma que descansa em paz ali, mas a parte com o seu nome foi arrancada, sobrando apenas a primeira letra do seu nome: "Lu". Meu Deus! Essa é a minha lápide!

Levo minhas mãos trêmulas até o rosto sem conseguir acreditar que estou vendo o local onde meu corpo frio descansa em paz há tanto tempo! Eu devo ter morrido nesse acidente de carro e vivi uma vida de ilusões até chegar aqui! Ou será que estou enlouquecendo? Será que o outro lado era real? Será que eu sou real?

Sinto as mãos de Regan apertarem meus braços com força e carinho ao mesmo tempo. Ele me olha firme e me diz para sair deste estado de surto... me garante que esta lápide não é minha, ou não estaríamos ali, respirando e trocando essas palavras de alento. Me acalmo, mas a minha curiosidade não vai embora.

- Regan, se esta lápide não é minha, de quem é, afinal?

O negro alto se prepara para falar, quando é prontamente interrompido pelo velho Sr. Philip: _ "Cê num vai falá nada pra moça que num é pra falá! Ela tem que vê as coisa cum seu próprio olho" .

- Senhor Philip, por favor, eu preciso saber de quem é essa lápide! Afinal, está na minha propriedade!

- "Verdade, senhora... tá na tua propiedadi. Mas a senhora num qué que nóis fala coisa que vai deixá a senhora tiste, né não?"

- Senhor Philip, eu não estou entendendo.

- "É simples, minha senhora. Ocê tem que escutá seu coração. E tem que fazê as paz com teu destino. Aí a senhora vai entendê... e vai enxergá..."

Respiro fundo e prefiro não continuar com esse diálogo irritante.

- Regan, onde está papai?

- Ele foi comprar as flores do seu casamento, Srta Myers.

- Então ele está na loja da senhora Sunshine, certo?

- Não, Srta Myers, ele foi no Vale do Silêncio buscar as flores.

- No Vale do Silêncio? Mas lá não tem "bluebonnet"... lá só tem tulipas negras!

- Sim, senhorita. Ele foi buscar as "rainhas da noite".

- As tulipas negras são chamadas rainhas da noite ou as damas da morte! Por que o papai iria colocar uma decoração de morte no meu casamento?

- Mas a senhora não está morrendo, Srta. Myers?

- Morrendo, eu? Não! Eu estou me casando!

- E também está morrendo lá do outro lado, se esqueceu?

Uma chuva pesada começa a cair e sinto as gotas machucarem meu rosto. À medida em que a tempestade piora, meus pés afundam na terra fofa que começa a virar lama. Observo a lápide quebrada e a capela com suas paredes tomadas por plantas trepadeiras e fungos impiedosos que se instalam na parte onde o sol não consegue chegar. Percebo agora que sou somente uma viajante à procura de respostas para a minha dor. E que, até mesmo no paraíso, encontramos os nossos demônios escondidos atrás dos altares que cultuamos...

Gateheaven (Finalizada)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora