Seu último Truque

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Acordei de um sonho profundo com um corpo que não me pertencia. Sabia que podia caminhar novamente com pernas que também não eram minhas... uma vida me foi dada de presente por uma completa estranha. Uma estranha que se apiedou da minha alma doída e macerada de sonhos incompletos. Ela soube, no instante em que me viu, que eu precisava seguir meu caminho; percebeu que eu tinha coisas incompletas a resolver e me deu a sua permissão para resolvê-las, juntamente com as "coisas" dela.

E, dentre as suas coisas mal terminadas, estavam seu filho e seu marido, que não poderiam ficar para trás sem um consolo, sem um afago de mãe e esposa. As memórias dela estavam vivas dentro do seu cérebro perfeito e suas emoções estavam gravadas em cada célula do seu corpo, de modo que não havia como escapar desse turbilhão de emoções que essa mulher levava no peito. De mim só restaram os pulmões e as recordações, que se tornavam cada vez mais escassas dentro da minha memória astral. A cada respirada um pouco da Luanna ia embora e mais da Verônica se tornava presente. Era uma luta interna, uma batalha entre duas leoas que não queriam ver o rosto de seus filhos se perderem no nevoeiro do adeus.

Eu sabia que tinha pouco tempo até me transformar inteiramente nela, e quando esse dia chegasse, provavelmente eu voltaria para Gateheahen, para descansar eternamente ao lado dos que ainda me amam como eu sou.

Me levantei depressa demais para uma mulher que acabara de ter os pulmões transplantados. Perdi o ar por alguns segundos e tive que voltar a sentar. A enfermeira sisuda veio correndo me ajudar, assim que o alarme do monitor apitou. Ela me pediu para relaxar e voltar a deitar; disse também que meu marido e meu filho voltariam em meia hora para me ver. Me assustei com a hipótese de ser reconhecida: a ladra do corpo da mãe de uma criança inocente e de um fiel marido apaixonado... me consolava o fato de ter a vantagem de usar seu próprio rosto como cúmplice da nossa farsa. Era um acordo entre damas, fincado no além e protagonizado no "presente do particípio", em circunstâncias que eu mesma desconhecia exatamente.

Não podia lutar contra o destino nem fazer dele um vilão, destruidor de sonhos. Tinha que pensar que essa manobra da vida foi a forma que eu tinha de me reconciliar com a Luanna Marques, abraçar meu velho pai, ainda que em um outro corpo, fazer surgir algo bom depois de tanta tragédia, depois de tanta mágoa...

Escuto batidas na porta. São eles! Tento me esconder dentro de mim, mas é impossível não olhar para uma criança de sete anos, cujos olhos exalam a expectativa de rever a tão adorada mãe...

Ele é um menino doce; usa grandes óculos vermelhos e possui bochechas gordas que ressaltam suas maravilhosas e profundas covinhas. Seu cabelo é bem liso e de cor castanho claro; seus olhos verdes são quase imperceptíveis no conjunto do rosto, mas são, igualmente, encantadores. Ele traz um cavalinho em uma das mãos e me entrega imediatamente.

- Mamãe! Mamãe! Você sarou!

- Sim, meu filho... - Por algum motivo estranho não consigo acessar a memória em que o nome dele aparece. Tento disfarçar chamando-o simplesmente de "meu filho".

- Olha o que eu trouxe para você! - ele estende o braço gordinho e me entrega o cavalinho de pelúcia marrom.

- Ele é novo, eu não dei nenhum nome ainda, qual você quer?

- João, deixa a sua mãe descansar, filho. Ela está muito fraca ainda... meu amor, como você está se sentindo? - Um frio arrebatador invade a minha coluna, deixando minhas pernas dormentes por alguns segundos. O nome dele é João! Meu Deus! Não pode ser! Eu consegui voltar para este plano no corpo de uma mulher cujo filho se chama João? Isso não pode ser coincidência!

- Verônica? O que foi? Você está bem? - Pergunta um marido aflito por respostas. Devo ter ficado alguns segundos fora do ar, pensando sobre o João... a enfermeira o interrompe e pede que se retirem, pois eu ainda estou sob o efeito da anestesia.

Meu marido me beija suavemente e meu mais novo filho me abraça apertado. Antes de saírem, João se vira e me pergunta novamente, qual nome eu quero dar para o cavalinho. Respondo sem hesitar:

- Peter!

Ele sorri satisfeito e sai do quarto com o pai.

Gateheaven (Finalizada)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora