Tudo Pode Acontecer Novamente

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Alguns dias depois, eu consigo sair do hospital. As imagens no caminho são confusas: ao mesmo tempo em que estou em Belo Horizonte, lugar em que morei quase a minha vida toda, não reconheço as avenidas e pontos principais. Pergunto para meu "marido" onde moramos e ele me diz que vamos para nossa casa, no bairro "Funcionários", que fica do lado oposto de onde morava... este bairro é um dos mais nobres de Belo Horizonte, localizado na região central da cidade.

Durante o caminho meu novo "filho" João segura minha mão com força, como se eu estivesse prestes a ir embora a qualquer momento. Não consigo sentir amor por ele, só raiva de mim por estar ocupando o lugar da sua mãe, a verdadeira.

Chegamos ao prédio 490 da Rua Bernardo Guimarães; é um prédio grande, de esquina, desses mais antigos que eram bem modernos na década de 80... nosso apartamento fica no oitavo andar e ocupa toda a extensão do prédio. A decoração da sala é clássica com muitos móveis de madeira escura. As cadeiras da mesa de jantar possuem um trabalho artesanal nas suas extremidades, formando arabescos cuidadosamente desenhados; percebo o mesmo trabalho nos pés da grande mesa retangular com tampo de mármore bege. Uma estante enorme se estende por toda a sala, contrastando com a televisão igualmente enorme.

- Seus livros estão todos aí, Verônica. Não mexemos em nada... - Diz meu mais novo marido me indicando meu mais novo gosto pela leitura de romances de época. Percebo que dois livros estão expostos na estante dentro de caixas de acrílico e, quando me aproximo das caixas, vejo que são edições antigas dos clássicos "Orgulho e Preconceito" de Jane Austen, e o "Morro dos Ventos Uivantes", de Emily Brontë, ambos em inglês.

Olho atentamente para meu marido como se entregasse minha frágil posição com relação à vida que eu tinha. Eu demonstro claramente não reconhecer cada centímetro do piso em que estou inserida...

- Verônica, meu amor, eu sei que você não se lembra de muita coisa... faz parte do processo que você passou...

- Que processo foi esse?

- Você ficou em coma por alguns dias, pouco antes de conseguirmos o transplante para você. Segundo o Dr. Gross, após o coma, algumas pessoas podem ter uma perda de memória passageira. Então não é nada que você deva se preocupar, meu amor. O importante é que você está em casa, de volta ao seu lar.

- Então, sobre isso... eu preciso falar com você.

- Sim, Vero. Pode falar o que você quiser para mim.

- É que eu não sou... eu não sou - Nesse momento João me abraça por trás e aperta meu quadril com força. Sinto seus batimentos em uma das minhas nádegas. Me contorço de arrependimento por ter escolhido vir para este lugar, mas a verdade é que, se eu não estivesse aqui ela também não estaria! Não sei o que é o correto, o certo, mas sei o que devo fazer: tentar. Vivi uma vida inteira de desculpas, evitando ser quem eu deveria ser e sentindo uma pena enorme de mim. Já está na hora de começar uma nova história, uma sem medos ou mágoas. Uma história limpa, ainda que embasada em uma mentira...

- Meu filho, João. Mamãe está com um probleminha de memória, mas vai recuperar tudo. Eu vou voltar a ser a mamãe que você sempre conheceu, só me dê um tempinho para me lembrar, tá bom filho?

- Tá bom, mamãe. - Vejo os óculos com armação vermelha do menino bochechudo começarem a esfumaçar, demonstrando que os seus olhinhos já estão cheios de água.

***

Os dias passam e eu não consigo seguir adiante com a minha nova vida ainda pensando nas pessoas que deixei pra trás... resolvo ligar para casa e escuto a voz do meu pai:

Gateheaven (Finalizada)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora