Capítulo 20

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Ajeitei-me em uma posição confortável, apoiando a cabeça em uma das mãos e com a outra, traçando linhas imaginárias em suas costas desnudas. O lençol mais próximo estava aos nossos pés, o que me permitia vislumbrá-lo por completo.
Sorri quando ele deu um sorriso manhoso com a cara amassada no travesseiro. Sorri quando seus olhos tentavam se abrir. Apenas sorri por estarmos ali.
— O que você está fazendo? — Sua voz soava sonolenta.
— Nada de mais. — Continuei deslizando as pontas dos dedos em suas costas.
— Isso é bom. — Murmurou e bocejou, levando-me a bocejar junto, enquanto lutava para despertar.
Com as pontas dos dedos, analisou meus lábios e minhas bochechas, afagou meus cabelos e alcançou o celular na cabeceira de sua cama.
— O que pensa que está fazendo? — Indaguei quando mirou a câmera do telefone em nossa direção e nos fotografou.
— É só pra ter certeza que isso é real. — Devolveu o aparelho ao seu lugar.
— O que quer dizer? — Arqueei as sobrancelhas.
— Às vezes eu ainda duvido que seja real. Quando estamos juntos, eu me pergunto quando irei acordar deste sonho. — Segurou a minha mão. — Quando acordo, antes de abrir os olhos, eu rezo para que ainda esteja aqui e que não seja apenas um sonho ou coisa da minha cabeça. Porque é tão bom que não pode ser real. Porque você é tão incrível e está comigo...
Não permiti que ele concluísse esse pensamento.
— Eu estou aqui. — Selei nossos lábios com um beijo singelo. — É real. — Sorri para ele e me aconcheguei em seu corpo. — Eu sou real.
— Tem uma coisa. — Ele se afastou, saltando da cama. — Tem uma coisa que eu nunca fiz pra você! Como eu pude?
Permaneci em silêncio, perdida, procurando entender aquela situação.
Ele alcançou o violão e sentou-se em uma cadeira de madeira ao lado da cama com o instrumento em seu colo.
Eu o observei dedilhando as cordas do seu violão.
— Por favor, não ria de mim. — Pigarreou. — Eu não costumo cantar, essa é uma rara exceção!
— Tudo bem!
“On me dit que nos vies ne valent pas grand chose
(Disseram-me que as nossas vidas não valem grande coisa)
Elles passent en un instant comme fanent les roses
(Elas passam em instantes como murcham as rosas)
On me dit que le temps qui glisse est un salaud
(Disseram-me que o tempo que passa é um desgraçado)
Que de nos chagrins il s'en fait des manteaux
(Que das nossas tristezas ele faz seus casacos)
Pourtant quelqu'un m'a dit
(No entanto, alguém me disse)
Que tu m'aimais encore
(Que você ainda me amava)
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore
(Foi alguém que me disse que você ainda me amava)
Serait ce possible alors
(Seria possível, então”?)”
— Isso foi lindo! — Eu me coloquei de pé, tirei o violão de suas mãos e sentei-me em seu colo. — Até que não canta mal.
— Bondade sua.
— É sério, foi lindo, e eu me pergunto por que esperou tanto tempo pra tocar algo para mim.
— Não sabia se iria gostar.
— Cantou Carla Bruni, é claro que eu ia gostar. — Envolvi meus braços ao redor do seu pescoço e beijei a sua nuca. — Espero que não seja a última vez.
— Não seria ruim vê-la me mostrando seus dotes artísticos...
— Seria péssimo. Eu não canto nem no chuveiro. Uma vez tentei participar do show de talentos da escola na sexta série, e quando comecei a cantar, as pessoas começaram a ir embora. Spice Girls nunca foi a mesma coisa desde então.
— Adoraria ter visto esse momento. — Gargalhou.
— Por que não vai se ferrar?
— Melhor não. — Ele me abraçou, apoiando a cabeça em meu peito. Deitei minha cabeça sobre a sua.
— Sabe o que comemoramos amanhã? — Resmunguei.
— Seu aniversário?
— Não, meu aniversário é só no mês que vem.
— Não faço ideia.
— É o nosso aniversário de dois meses. — Afastei minha cabeça e segurei seu rosto. — Não se lembrava, não é?
— Se eu disser que lembrava você não me bate?
— Idiota! Você não lembrava! — Dei um leve tapa em seu ombro.
— Rose, eu mal me lembro da data do meu aniversário. Se não me lembrarem, passo direto por ela.
— Devíamos comemorar.
— E o que quer fazer?
— Sair por aí, comer besteira... Espere, amanhã eu não posso. — Constatei.
— Por que não?
— Reunião importante. Estarei ocupada a semana toda. O mês está começando e tenho milhares de coisas pra planejar, mas podemos compensar no fim de semana.
— Certo. E o que você quer de presente?
— Eu não quero nada. Infelizmente você tem uma namorada que precisa de nada. — Mexi em seu cabelo embaraçado. — Mas, e quanto a você, o quer?
— Mudar de emprego seria uma boa.
— Realmente odeia aquele escritório, não é?
— Só acho que não nasci pra servir café e fazer xerox para executivos!
— Talvez eu possa fazer algo.
— Já conversamos sobre me emprestar dinheiro.
— Não é isso. Eu conheço pessoas, posso te ajudar. Quem sabe você não volta a trabalhar com música. É o que você ama, certo?
Ele parou por alguns segundos com os lábios entreabertos e com delicadeza deslizou uma das mãos em meu rosto. Olhou fixamente em meus olhos, como se tentasse desvendar algum segredo por detrás deles.
— Sim, é o que amo. — Abaixou os olhos.
— Vou dar um jeito nisso, será o meu presente!
— Seu único presente, certo?
— É claro! — Menti. Era mais que óbvio que eu compraria algo para ele. Provavelmente roupas novas. Ela estava precisando de algumas. — Devo me vestir agora. A semana está apenas começando e os trabalhos na revista estão a todo vapor!
— Tem mesmo que ir?
— Tenho e o senhor também. Pode me dar uma carona?
— Claro, minha senhorita!  — Beijou-me sorrindo.
Agora, na sua cômoda, havia uma gaveta com as minhas coisas. O que eu achava péssimo. Minhas coisas não cabiam em apenas uma gaveta. Talvez em uma cômoda toda coubesse uma pequena parte delas, mas, só uma gaveta?
Vasculhei o pequeno espaço procurando algo que eu pudesse vestir naquela manhã de segunda-feira.
Vesti um short preto de couro, um cropped dourado e preto com um sobretudo preto e belas sandálias de tiras pretas e douradas. Prendi meu cabelo em um coque alto e alcancei minha bolsa sobre a mesinha em um canto. Eu me perfumei e caminhei cantarolando até ele.
— Caralho! — Ele arregalou os olhos, boquiaberto.
— O que foi? — Eu me olhei, preocupada, em busca de algo de errado. Levantei meus braços e me cheirei, examinando se estava fedendo, mas parecia tudo em ordem.
— Minha namorada é a mulher mais linda do mundo!
Não disse nada a ele, apenas peguei a sua mão e juntos, saímos do seu casebre.
***
Parada na imponente escadaria do prédio da Belle, eu acenei para me despedir do meu namorado. Aguardei até que ele desaparecesse da minha vista em sua vespa azul para voltar a subir os degraus.
Como de costume, adentrei o ambiente de nariz empinado, com a minha bolsa a tiracolo sendo cumprimentada com sorrisos falsos de funcionários que eu sabia que costumavam espalhar boatos sobre mim.
Ah! A Adele me pagaria por ter espalhado aquela história do peixe. Eu até contaria a vocês, mas prefiro deixar esse assunto morrer.
— Bom dia, senhorita Rose! — Ouvi a voz entusiasmada de Louane, que num passe de mágica estava ao meu lado, fazendo com que eu desse um pulo, assustada.
— Bom dia, Louane... Parece animada demais para uma segunda-feira, não acha? — Ela me entregou um copo de café preto enquanto caminhávamos lado a lado.
— Sim, senhorita. Eu tive uma noite animada, se é que me entende. — Levantou as sobrancelhas com um sorriso malicioso.
— As coisas estão bem com Saymon?
— Incrivelmente bem, senhorita.
— Isso é bom, espero que sejam felizes. — Eu disse enquanto entrávamos no elevador. — Algum recado pra mim?
— Sim, senhorita. A sua mãe avisou que haverá uma reunião às dez com alguns parceiros da revista, e disse que a sua presença é de extrema importância. Ao meio-dia, tem um almoço com um tal de Darci, ouvi falar que ele estará representando a Louis Vuitton.  Bom, à tarde a senhorita está livre, mas Charlotte disse que precisa conversar a respeito do lançamento da coleção de roupas da Belle. Algo sobre os tecidos não estarem de acordo com o que ela pediu.
— Louane. — O elevador parou e prosseguimos até a minha sala. — Sabe que eu confio em você, não sabe?
— Sim, senhorita. — Ela ficou séria e endireitou a postura.
— Entende que você, Louane Dosseau, é o meu braço direito neste lugar, não entende? — Sentei-me em minha cadeira e a garota sorriu, radiante.
— Sim, senhorita, o que a senhorita precisa?
— Já que pergunta, você pode lidar com isso pra mim, pode ser? São apenas tecidos.
Seu sorriso se fechou e o olhar se tornou perturbado.
— Charlotte é uma pessoa um tanto complicada de lidar. Ela costuma gritar com todos à sua volta.
— Eu confio em você, Louane. Você é capaz de lidar com ela. Veja, eu vivi com Simonette grande parte da minha vida e continuo linda e arrasando, certo? Você também consegue! Considere uma experiência de aprendizado. Quem sabe, em um futuro nem tão distante, a senhorita não seja promovida?
— Tem certeza? — Mordeu o lábio, preocupada.
— Absoluta! Mas antes de ir, preciso que entre em contato com o maestro da Orquestra de Paris. Diga que Rose MacIntyre precisa se encontrar com ele essa tarde.
— Sim, senhorita!
— Ainda tem uma coisa. Amanhã eu e meu namorado completamos dois meses de namoro e eu preciso comprar algo para ele, mas você já sabe que estarei ocupadíssima essa semana. Poderia comprar algo em meu lugar?
— Eu? Senhorita, eu mal o conheço...
— Você já o viu algumas vezes.
— Duas vezes, não sei o que ele gosta.
— Compre algo da Armani, já sei... Compre um terno completo. Peça ao vendedor um terno para um cara desse tamanho. — Levantei-me e mostrei mais ou menos a altura dele com as mãos. — E magrinho assim.
— Certo, senhorita, mais alguma coisa?
— Por enquanto é só isso! Obrigada, Louane.
— De nada. — Agradeceu e se retirou da sala.
***
Era por volta das cinco da tarde que eu deveria me encontrar com o maestro da Orquestra de Paris.
Respirei fundo e prossegui, aguardando o encerramento do ensaio da orquestra para que pudéssemos conversar a sós. Permaneci sentada em uma poltrona assistindo às dezenas de músicos que tocavam seus instrumentos com tamanha graça e desenvoltura inigualáveis uma melodia capaz de nos transportar para uma espécie de paraíso.
O último acorde fora tocado e os músicos começavam a guardar seus instrumentos. Então ele olhou em minha direção e sua expressão se fechou. Ele caminhou até mim e me convidou ainda em silêncio para que eu o seguisse até um lugar mais reservado.
Fomos até a sua sala de paredes de madeira na qual já estive presente algumas vezes.
— Rose MacIntyre, confesso que fiquei surpreso quando a sua assistente me ligou dizendo que queria conversar comigo. Pessoalmente. — Acomodou-se em sua poltrona executiva de couro marrom. — Pode se sentar. Devo chamá-la de senhora ou senhorita?
— Michel. — Eu o repreendi.
— Disse algo ofensivo?
— Senhorita, me chame de senhorita MacIntyre.
Um sorriso divertido se formou em seus lábios grossos, então ele cruzou as mãos sobre a mesa de madeira.
— O que de tão urgente seria capaz de trazê-la até aqui depois de tantos anos?
Eu não sabia o que dizer. Nem como dizer.
— Preciso da sua ajuda. — Disse de maneira direta, então ele gargalhou.
— Rose MacIntyre me pedindo ajuda. Quem diria, não é? A vida é mesmo irônica, não acha?
— Eu não viria aqui se não fosse importante.
— Deve ser mesmo, afinal, depois do que me fez não teria a audácia de voltar aqui em vão.
— Eu já pedi desculpas. — Fitei seus olhos com firmeza, comprimindo meus lábios.
— Prossiga. O que precisa?
— Tem uma pessoa, um rapaz, ele é músico e atualmente não está trabalhando com o que mais ama, pois as aulas de música que ele lecionava não eram suficientes para pagar o aluguel. Preciso que dê uma chance a ele, o cara é bom, faça uma audição, eu não sei. Só dê uma chance a ele de entrar neste mundo. É muito importante, por favor!
— Por favor. — Ele olhou para cima e riu, incrédulo. Apertei as minhas mãos em punho. — Você ao menos se lembra o que me fez? Terminou comigo pra ficar com o meu melhor amigo, digo, ex-melhor amigo. Como ele está com a sua mãe? O casamento vai bem? O que adiantou, não foi? No final das contas, ele dormiu com a sua mãe. Eu te amei, Rose, como nunca havia amado ninguém, e uma noite você aparece dizendo que não me amava, que seu coração pertencia a outro homem. Pierre Lacroix. A vida sendo irônica outra vez. — Prosseguiu de maneira firme.
— Eu não devia ter feito aquilo.
— Não, não devia, mas fez e isso me destruiu. Você não tem ideia.
— Sinto muito.
— Não, não sente.
— Acha que não sei como se sentiu. Eu fui trocada pela minha mãe. A vida se encarregou de te vingar e fez isso muito bem feito. Mas não estou aqui pra falar do nosso passado, estou aqui para ajudar alguém que é importante pra mim. Não faça isso por mim, faça por ele, por uma pessoa apaixonada por música que sonha em tocar neste lugar desde criança.
— Tenho um horário quinta-feira às seis da tarde. Diga para o rapaz não se atrasar. É a única chance dele.
— O que quer em troca?
— O fato de vê-la nesta situação me implorando por ajuda é impagável. Agora peço que me dê licença, nossa conversa termina por aqui.
— Obrigada, Michel.
— Apenas saia.

Rose e o Cara (Concluída) Where stories live. Discover now