Capítulo 18

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— Bom dia, flor do dia! — Abri as cortinas brancas que cobriam a porta da sacada, deixando a luz do sol do meio-dia adentrar o quarto, e puxei os lençóis que cobriam o corpo nu dele.
Seus olhos se abriram vagarosamente, acompanhados de resmungos, e automaticamente, ele puxou os lençóis sobre si, cobrindo metade de seu corpo.
— O que está acontecendo? Que horas são? — Ele coçava os olhos, enquanto se sentava na cama.
— É meio-dia e estou te acordando. — Eu me sentei à beira da cama e observei a sua cara amassada.
— Você tinha um desfile às nove, não tinha? Se atrasou? A culpa é minha?
— Eu tinha...
¬— Merda, não devíamos ter passado muito tempo acordados...
— Mas já acabou e eu acabei de chegar de lá.
— Isso explica o fato de estar vestida assim. — Pousou seus olhos em meu vestido azul com rendas.
— É Marchesa. — Ajeitei a saia rodada da peça.
— Realmente não faço ideia de quem é essa tal Marchesa, mas ficou linda com isso.
— Eu sei. — Sorri.
— Por que não me levou com você?
— Porque odiou o dia de ontem, e eu sei que isso não tem nada a ver com você, então...
— Obrigado... Foi lindo da sua parte. — Ele sorriu com os olhos quase fechados, levantou-se e seguiu até o banheiro.
— Eu estive pensando, e poderíamos almoçar fora hoje, e depois dar uma volta pela cidade. O que acha? — Indaguei do lado de fora do banheiro.
— Uhum, ok. — Resmungou.
— Certo, certo, tem preferência por alguma comida?
— Apesar de ter namorado uma italiana, não conheço nada da cozinha italiana além de macarrão e pizza. — Saiu do banheiro e se aproximou de mim.
— A pizza deles é a melhor. — Minha boca se encheu d’água quando me lembrei do sabor da autêntica pizza italiana. — Você vai adorar!
— Vou? — Apoiou suas mãos na parede com seus braços esticados de cada lado meu e seu rosto próximo o suficiente para que eu inalasse seu hálito de creme dental sabor menta.
Acenei com a cabeça, concordando.
— Agora coloca uma camisa que estou morrendo de fome. — Ele me beijou nos lábios e partiu em busca de roupas.
***
— Você estava certa, a pizza é de outro mundo. É insana. — Caminhávamos de mãos dadas em frente à Catedral de Milão.
— Eu disse, eles devem ter algum dom divino, ou algo do tipo... Ai merda.
— Não é uma merda.
— Não é a pizza.
Na verdade, não era mesmo a pizza. Nem nenhuma outra comida. A não ser que fosse escargot – eu odeio escargot –, como alguém pode comer aqueles caramujos? Minha parte escocesa nunca aceitou a ideia de comer aqueles bichos gosmentos. Voltando a parte da merda, a merda era bem grande.
Lá estava ele. Juan.
Meu ex-namorado espanhol vinha caminhando em nossa direção com uma mulher da altura de um poste a tiracolo. Namoramos pouco tempo depois que eu e Pierre terminamos o noivado. Durou um mês e meio, e terminamos por um motivo bem justificável.
Eu meio que não curtia o trabalho dele. Mas não vou entrar em detalhes.
— Olha, eu acho que a gente devia andar para aquele lado ali. — Eu me virei e puxei o meu namorado comigo.
— O que tem ali?
— Um negócio bem interessante...
— O que você está escondendo? Tem algo de errado, né, por isso disse merda, não foi? O que tem atrás da gente? — Ele girou sobre os calcanhares, voltando para o lado que estávamos, a cabeça esticada procurando por algo.
— Rose, Rose MacIntyre! — A voz de Juan soava familiar, embora distante em minhas memórias.
Eu me virei e ali estava ele, sorrindo, exibindo seus dentes brancos contrastando com a pele bronzeada, e os cabelos castanhos curto nas laterais e longos em cima.
— Juan Álvarez, eu não acredito. É você mesmo?
— Pois é, faz tanto tempo...
— É, um tempinho...
— Ah, eu como eu sou mal-educado, essa é a Mab.
— Mab?
— Significa Deusa, é Irlandês.
— Ah, hum, esse é meu namorado, namorado.
— Seu namorado tem um nome?
— Tem, mas eu não sei ainda.
Juan segurou o riso.
— Como não sabe o nome do seu namorado.
— É a religião dela, temos que respeitar. Mas me diga, como se conheceram? É um amigo antigo?
— Nós namoramos pouco tempo, não é, Rose?
— É, pouco tempo, mas foi legal.
— Foi...
— Por que terminaram?
Olhei para o rapaz ao meu lado, repreendendo-o com um olhar irritado.
— Por que terminamos? — Juan olhou para mim e pareceu pensar por alguns segundos. Ele não poderia dizer, poderia?
Apertei meus lábios e olhei em seus olhos, segurando a respiração e aguardando sua resposta. “Ela terminou comigo porque achava meu emprego estúpido”.
Lancei um olhar a ele que implorava para que não dissesse a verdade. Se ele contasse ao meu namorado que terminamos por isso, eu provavelmente teria mais um ex em alguns minutos. O olhar de Juan se encontrou com o meu e de alguma forma ele parecia ter entendido a mensagem.
— Incompatibilidade linguística. — Obrigada, Deus. — Na época, eu não sabia falar francês nem inglês, então era um tanto difícil me comunicar com ela. Acabou não rolando.
Juan era fluente em quatro línguas – espanhol, inglês, francês e português.
Fluente desde a adolescência.
Respirei aliviada. Ele havia mentido por mim, mesmo que eu tenha sido uma babaca com ele no passado. E eu tinha uma dívida com ele. Das grandes.
— E o que traz vocês a Milão? — Mudei de assunto.
— Mab está desfilando pela Dior na Semana de Moda. Uma semana antes do casamento e nem estamos na Espanha, acredita nisto?
— Vão se casar?
— Sim, no próximo fim de semana.
— Uau, meus parabéns. Agora nós temos que ir, eu também estou a trabalho pela Belle, sabe. Mas a gente se vê.
— Até mais, foi bom revê-la, Rose.
— É, foi bom te encontrar também. — Dei um sorriso amarelo.
Juan e Mab seguiram seu caminho em direção ao último modelo lançado de Maserati estacionado na rua.
— Aquele carro é dele?
— Sim, por quê?
— Por nada, nada. — Colocou as mãos nos bolsos da camisa jeans aberta sobre uma camiseta azul listrada.
— Nunca mais faça isso.
— Isso o quê? — Ele me lançou um olhar perdido.
— Perguntar por que eu e meus ex-namorados terminamos. Não é legal.
— Tem mais ex-namorados pra perguntar? Já conheci dois deles.
Três, mas ele não sabia nada sobre Pierre.
— Tem mais alguns.
— Alguns quantos?
— Alguns. — Respondi meio rude, irritada com o interrogatório.
— Tudo bem, sem perguntas.
— Está bravo?
— Não. — Deu dois passos e encostou seu corpo ao meu. — Está tudo bem. — Seus braços finos me envolveram e seus lábios tocaram a minha testa.
— Você é o cara mais fofo com quem eu já saí, sabia? — Murmurei com o rosto apertado contra o seu ombro. — Mas não vai ficar se achando por isso, entendeu?
Ele apenas balançou a cabeça, assentindo, e soltou um suspiro que mais parecia um riso.
— Mas eu não tenho uma Maserati...
— Foda-se a Maserati. — Fechei meus olhos e ficamos ali, abraçados no meio da calçada repleta de turistas indo e vindo. Era como se não houvesse mais ninguém além de nós no mundo. Um mundo inteiramente nosso.
***
— É sério, como você me aguenta? — Indaguei dentro do Uber que nos levava de volta para casa.
— Não é tão difícil assim. E eu tenho muita paciência.
— Cala a boca. — Dei um leve soco em seu braço.
— Foi você quem perguntou...
— Poderia ter mentido e dito que eu sou maravilhosa e não encho a paciência de ninguém.
— Não sou um grande adepto da mentira. — Arqueei as sobrancelhas. — Mas talvez você seja mesmo maravilhosa.
— Talvez? — Cruzei os braços e fitei seus olhos escuros.
— É, talvez. — Ele sorriu e passou um dos braços por trás do meu pescoço, beijando minha testa.
— Talvez você seja um idiota!
— Eu sei. — Riu ele.
— Eu andei pensando e realmente gostaria muito de conhecer seu apartamento. — Eu me desvencilhei do seu braço. Seus olhos se arregalaram e sua boca se abriu e fechou em silêncio.
— Meu apartamento, quer conhecer onde eu moro...
— Isso mesmo.
— Por quê?
— Por que é o meu namorado?
— Sabe que tem coisas com meu nome lá?
— Eu imagino, mas eu espero você escondê-las. Fico na porta esperando.
— Você quer ir agora?.
— Sim, o motorista pode nos levar lá, é só dizer a ele.
— Claro, claro, certo, eu vou passar o endereço pra ele.
Não demorou muito para chegarmos ao bairro onde ele morava. Era uma espécie de conjunto habitacional nos subúrbios de Paris. Dezenas de prédios acinzentados formavam um conglomerado de apartamentos. Crianças corriam de um lado para o outro e alguns garotos bebiam e ouviam música alta com seus carros estacionados em um canto qualquer.
— Hum... Diferente.
Ele não disse nada sobre o meu comentário, apenas continuou caminhando em direção a um dos prédios, segurando suas chaves e malas nas mãos.
Eu nunca havia ido para um lugar assim em toda a minha vida. Nunca havia saído da minha bolha da alta sociedade. E, de certa forma, aquilo era totalmente novo. Minhas malas de rodinhas faziam barulho no asfalto, enquanto as puxava pelo caminho. E era a primeira vez que eu me sentia extremamente desconfortável vestindo Chanel.
— Já veio a um lugar assim antes?
— Não, isso é tão excitante. — Dei um sorriso animado.
— Certo. — Girou os olhos. — É nesse prédio.
— Isso é demais... Aqui é sempre assim?
— Assim como? — Passamos pela porta. Não havia nenhum elevador, apenas escadas e senti que iria morrer.
— Cheio de crianças e adolescentes enchendo a cara.
— Por favor, não faça isso.
— Isso o quê?
— Essa coisa que gente rica faz quando vai para o gueto.
— Tá bem. — Meus olhos continuaram procurando por um elevador. — Onde está o elevador?
— Não tem.
— E como você chega em casa?
— Os homens criaram uma coisa incrível chamada escada.
— E outros criaram uma mais incrível chamada elevador.
— Temos que subir as escadas.
— Em que andar você mora?
— Quarto. Não é tão ruim.
— Não... — Arranquei meus saltos dos pés e os entreguei a ele.
Ele subia logo na minha frente, carregando sua mala e uma das minhas, além dos meus sapatos. Descalça, eu carregava a mala restante e a minha bolsa de mão.
No terceiro andar, eu podia sentir o suor escorrendo por minha testa e a vida se esvaindo de mim.
No quarto andar, eu estava me arrastando, quase morta e sem fôlego.
— Viu, nem foi difícil... — Ele se virou para mim e notou que eu me escorava na parede, tentando recuperar o fôlego. — Mas que merda, Rose, não corremos uma maratona, foram só alguns lances de escada.
— Eu sei. — Eu disse, ofegante e vesga. — A luz, eu vejo a luz... Diga para a Gabrielle que fui eu que comi todo o iogurte de laranja dela quando éramos adolescentes!
— Rose! — Ele me encarou com seriedade.
— Eu não sou a pessoa mais fitness do mundo, sabia? — Coloquei a mão no peito, que subia e descia rapidamente.
— Não seja dramática. Foram só quatro andares, não uma maratona, sem contar que eu estava carregando a maior parte do peso.
— Senhor Blanche, que prazer vê-lo em casa novamente. — Um homem gordo vestindo bermuda e regata branca – de extremo mau gosto, devo ressaltar – se aproximou de nós, segurando um molho de chaves nas mãos. Seu bigode parecia sujo com algum resto de comida.
— Senhor Lafaiete. — Meu namorado parecia surpreso e incomodado. — Já faz algum tempo, não é? — Gaguejou.
— Não tem aparecido por aqui há algumas semanas, pensei que havia se mudado.
— Estava viajando.
— Por quase três semanas?
— Isso, três semanas.
Ele estava mentindo. Ficamos menos de uma semana em Milão. Onde ele estava os outros dias, nas outras semanas? Fora quase o mesmo tempo que estávamos juntos.
— Vê isto na minha mão, senhor Blanche? — O homem ergueu o molho de chaves e as balançou com um sorriso quase perverso.
Meu namorado apenas negou com um olhar aflito.
— São as novas chaves do seu apartamento. Duas cópias suas e uma minha. Troquei a fechadura da sua porta. E só entregarei as chaves depois que me pagar os aluguéis atrasados.
— Senhor Lafaiete, eu prometo que no próximo mês eu pago todos os atrasados. É que nesse mês as coisas ficaram meio que complicadas, e eu não tenho mais do que cento e poucos euros pra passar o mês.
— Não só esse mês, como os outros três, senhor Blanche. Agora me diga, como bancou uma viagem?
— Eu paguei! — Anunciei, sentindo-me culpada por tê-lo feito gastar o pouco dinheiro que possuía.
— E você é quem?
— Rose, Rose MacIntyre. Editora executiva da Revista Belle, maior revista de moda do país e uma das maiores do mundo. E também sou a namorada dele.
— Blá, blá, blá, foda-se o que a senhorita é ou deixa de ser. Eu quero o dinheiro do aluguel ou o casal que está na fila de espera pelo apartamento vai parar de esperar.
— Você não vai falar comigo assim, senhor bigodudo! — Levantei a voz numa tentativa de enfrentá-lo.
— E o que você vai fazer, pagar o aluguel desse seu namorado merdinha?
— Sim, é isso que vou fazer.
— Rose, por favor, eu não preciso. Vou dar um jeito, as aulas esse mês foram fracas, mas no próximo acredito que vai melhorar. Por favor, senhor Lafaiete. — Ele uniu as mãos, implorando.
— O dinheiro ou dá o fora daqui.
— Quanto ele lhe deve? — Interrompi.
— Rose!
— Quanto ele lhe deve, senhor?
— Dois mil euros.
Puta merda.
Em silêncio, eu abri a minha bolsa de mão e a vasculhei, procurando a minha carteira. Deveria ter algum talão de cheques por ali. O senhor Lafaiete não tinha cara de quem possuía uma máquina de cartão de crédito.
Encontrei a carteira e a abri, peguei o talão de cheques e preenchi com o valor de dois mil euros. Assinei e soquei contra o peito do homem, que cheirava a suor e desodorante barato.
— A porra do seu aluguel. — Ele me olhou com desprezo e entregou as chaves para o rapaz ao meu lado, que não emitiu um som sequer.
— Obrigado, senhorita!
— Vai se ferrar! Abre a porta, por favor, porque se eu continuar olhando para o bigode nojento desse cara, eu juro que vomito no pé dele!
— Nos vemos no próximo mês, senhor Blanche. Espero que a sua namorada possa te bancar mais vezes. — Acenou com o cheque e se retirou dali.
Ainda em completo silêncio e cabisbaixo, meu namorado abriu a porta. Entrou no apartamento, levando consigo as malas que carregava e eu o segui.
Seu apartamento era pequeno. Um pouco maior que meu quarto.
Bagunçado. Essa era palavra perfeita para descrevê-lo. Havia livros e objetos espalhados por todo o ambiente. Um pequeno sofá marrom de dois lugares ficava em frente a uma televisão de vinte e nove polegadas sobre uma estante de madeira. Uma pia e um fogão dividiam espaço com uma pequena mesa de apenas três lugares, onde deveria ser a sua cozinha. Um violão e um teclado estavam ao lado da estante. E tinha uma porta, que parecia dar para o banheiro.
— Eu te pedi pra não fazer aquilo. — Começou ainda de cabeça baixa, encarando o chão.
— Fazer o quê? Pagar o aluguel? Você não podia pagar, ia perder o apartamento!
— Eu ia dar um jeito, Rose. — Levantou a cabeça e me olhou nos olhos. Seus olhos pareciam angustiados.
— Não, você não ia dar um jeito. Ia virar um sem-teto.
— Eu não quero que me banque, faz com que eu me sinta impotente e inútil...
— Eu não estou te bancando, apenas ajudando. Ajudando o meu namorado.
— Isso é uma droga, sabia? É humilhante...
— Onde esteve essas três semanas, senhor Blanche? — Indaguei, irritada, com as mãos na cintura.
— Na casa da minha irmã. — Bufou. — Eu não queria vir pra cá e encontrar o senhor Lafaiete me cobrando algo que eu não poderia pagar.
— Por que viajou comigo se não tinha condições...
— Porque você implorou! — Gritou ele. — Eu não tinha a menor ideia do que faria depois, mas eu queria que ficasse feliz. Eu sempre dou um jeito. Pensei que daria dessa vez.
— Poderia ter dito não!
— Poderia, mas eu queria ir. Eu queria estar com você!
— Eu voltaria em alguns dias.
— A culpa é toda minha agora?
— Não, não é, mas...
— Mas o quê? Acha que é fácil andar ao lado de Rose MacIntyre?
— O que quer dizer com isso?
— Já percebeu a forma como as pessoas olham pra nós, como as pessoas olham pra você e especialmente pra mim? Elas não gostam de me ver ao seu lado, Rose... Quando elas olham pra você, seus olhos brilham, seus rostos se iluminam, mas quando olham para mim, seus olhares dizem o quanto eu não deveria estar ao seu lado. O quanto eu não mereço você, mas eu quero merecer. Eu quero ser o cara que merece estar ao lado da Rose MacIntyre, que comanda a maior revista do país. Da mulher mais linda que já vi em toda a minha vida. Eu não quero ser o homem que depende da namorada e parece estar saindo com ela por necessidade. Eu não quero que pensem que me sustenta. Ou que sente pena de mim. Eu só quero ser o cara que está ao lado de uma mulher incrível porque ela gosta dele tanto quanto ele gosta dela! — Terminou com a voz embargada.
— Eu não fazia ideia. — Naquele momento, era eu quem encarava o chão.

Rose e o Cara (Concluída) Where stories live. Discover now