Capítulo 71 - Entre beijos e tapas

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Logo a cerimônia se desfez em cumprimentos e brincadeiras, e a modesta trupe que se alojava nos bancos de madeira avançou em massa para apresentar seus desejos de felicidade ao casal.

Quando chegou minha vez na fila, tentei já soprar a mensagem do Partido para Santa, mas ele não estava em condições de prestar atenção. Agradeceu confusamente a mim e a Astrakhanov pelo apadrinhamento, e reforçou o convite para a pequena recepção que tinham aprontado na casa do pai da noiva. Juntamo-nos, então, ao cortejo de convidados que saiu a pé para lá. Quando o fuzuê acalmasse e os ânimos ficassem plácidos em decorrência das barrigas cheias, eu transmitiria o comando para ele e qualquer outro colega intimado que se encontrasse na festinha.

A casa do sogro de Santa ficava nas Rocas, após o bairro da Ribeira, então era uma senhora caminhada. Alguém sugeriu que fossemos pelo trajeto mais próximo do rio, para aproveitar a brisa como antídoto contra o calor progressivo da andança e do avançar da manhã, e aos demais a sugestão pareceu razoável.

Descemos a Avenida Junqueira Aires comentando a cerimônia e interrogando os noivos sobre os pratos que encontraríamos em nosso destino. Havia pouca gente na rua, por ser muito cedo, a maioria das lojinhas ainda estava fechada, e o sol, reinando sozinho no seu tablado azul, emprestava um brilho especial às fachadas em tom pastel dos vários casarões daquela rua. Eles serviam de sede a órgãos públicos, como a Capitania dos Portos, ou de residência aos notáveis da cidade – a família Medeiros no Solar Bela Vista, Câmara Cascudo em seu sobrado, e tantos outros cuja fama já estávamos a tempo o bastante na cidade para conhecer.

Dependurada no braço de Astrakhanov, eu o usava de apoio e de metrônomo. Seguia a cadência regular e meio militar de seus passos para me orientar, enquanto deixava os olhos vagarem pelas casas, revendo as informações que eu sabia sobre seus donos e criando um mapa mental daquela sociedade. Tentava imaginar onde encontraríamos aliados – afinal, sempre havia burgueses "rebeldes", seduzidos pelo comunismo – e onde encontraríamos combate, no dia em que finalmente saísse nossa Revolução.

Distraída da conversa geral do grupo, e por isso mesmo mais aberta a estímulos externos, fui a primeira a notar a multidão que tomava a rua a uns cem metros de nós. O coração falhou momentaneamente, atacado por uma miríade de suspeitas, antes de eu perceber que eles não estavam de frente, mas de lado para nós.

— Arre! Mas o que... — balbuciou o sogro de Santa, percebendo também.

Logo o grupo todo paralisou.

— O que...

— Por que eles...

Nossos rostos e murmúrios intrigados não despertaram a mínima reação da multidão, que alimentava seu próprio bochicho, com os olhos voltados para o lado do cais. Tomando a dianteira, um irmão de Letícia foi indagar o que estava acontecendo, e voltou logo com uma informação vaga.

— Estão esperando um navio. Uns políticos vêm nele.

Isso explicava a presença de alguns militares por ali. Eu e Santa trocamos olhares preocupados. A parede humana bloqueava toda a Avenida Távares de Líra, na parte em que ela cruzava com o nosso caminho, e ainda por alguns metros para o lado da cidade. Contorná-los, portanto, estava fora de questão: precisaríamos abrir caminho por meio da homarada.

— Se a gente fizer uma filinha indiana, dá para perfurar a massa mais facilmente e abrir uma trilha para nós — sugeriu Santa, estudando o bloqueio.

Suas últimas palavras foram abafadas pela sirene de um barco que encostou no cais naquela hora. O burburinho na multidão se elevou de imediato e um leve empurra-empurra começou, com várias pessoas se pondo na ponta dos pés, a ver quem desembarcava.

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