Detalhes

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Acordo de um sonho estranho no meio da noite e embora fizesse frio minha camisa estava molhada de suor: ainda não tinha recuperado o fôlego. Conforme tento me lembrar da narrativa, os rostos conhecidos desaparecem de minha memória e perco os poucos detalhes que ainda retinha.

Procuro o celular na escuridão e o encontro no momento em que o alarme desperta: são seis e meia. Levanto-me, então, meio confuso, e vou direto para debaixo do chuveiro: alguns minutos sob a água quente e eu nem seria capaz de lembrar que tivera um pesadelo.

Tomo um café, escovo os dentes e penteio o cabelo. Atentei-me ao fato de que há poucos meses, a essas horas, eu já estaria ocupado demais no meio de massas e fornos: sorri com como toda uma realidade pode mudar num piscar de olhos.

Aguardo no ponto de ônibus e, poucos minutos depois, sento-me em algum dos bancos duplos que, àquela hora, estavam vazios: Júlia, como de costume, entrou logo depois e se sentou próxima à porta. Tive a impressão, certa vez, de vê-la sorrir para mim como se me reconhecesse, mas suponho que tenha sido só uma feliz coincidência...

Estudávamos na mesma escola, ela e eu, mas nunca trocamos palavras: não diretamente, pelo menos. Acho que gostava dela naquela época, acho que ainda gosto, mas nunca fui muito de puxar assunto então não posso culpá-la por ignorar minha existência quase que completamente.

Vi-a abrir a mochila e tirar um livro do qual, ainda que tivesse espichado os olhos para ver, não consegui descobrir o título: estava curioso para descobrir o que tocava em seus fones de ouvido também. Todas as pessoas que entraram na lotação, trabalhadores e estudantes em sua maioria, têm suas manias, seus trejeitos e eu gostava de observá-los no meu silêncio interior.

Sempre achei engraçado como as pessoas contam histórias através do que não dizem: seu modo de falar ou de calar, ou como andam e riem, mostra muito sobre elas. Seus rostos são livros que tento ler, muito do que quase ninguém percebe eu tento admirar e apreender e sei que pareço excêntrico demais quando me pego pensando nisso.

No curto trajeto que a circular percorre até chegar ao terminal eu consigo me distrair imaginando conversas aleatórias entre os passageiros e tentando adivinhar quais são as responsabilidades que os tiram tão cedo da cama.

Sorrio para mim mesmo quando as portas se abrem e vejo Júlia seguir um rumo totalmente diverso do meu: talvez amanhã eu resolva puxar um assunto.

O ônibus no qual entro poucos minutos depois está cheio de rostos desconhecidos dos quais me lembro muito bem: já tentei adivinhar suas histórias muitas vezes antes e, por mais que continue sendo um completo estranho a todos eles, quase os considero amigos que ainda não fiz.

O motorista fecha as portas e segue seu itinerário. Através da janela me apego aos detalhes da vida que segue do lado de fora: o céu azul quase sem nuvens indica que o tempo vai continuar firme e, embora o Sol brilhe convicto lá em cima, duvido muito que o frio que nos assola passe tão cedo.

Atento-me aos freios do ônibus que rangem ao parar em um dos pontos e me questiono se Pedro acordou no horário hoje. Minha resposta não tarda: ele passa pela catraca e se senta ao fundo do ônibus, como sempre faz. No peito de seu moletom traz estampado o nome do curso, nas costas o seu.

Está mais sério hoje do que costumo me lembrar, fico imaginando o que deve ter acontecido. Algo na expressão dele me incomodou, mas não saberia dizer ao certo o quê: talvez fosse porque, embora eu ainda não soubesse, aquela seria a última vez que o veria com vida.

Descobri tarde demais que Pedro tinha um cachorrinho.

E sei que a de Júlia também vai esperar a volta dela em vão.

Travessias [Degustação]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora