Dupla

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Ainda estava me adaptando a viver no Araucárias, fazia poucos meses que eu havia me mudado. O bairro era bem tranquilo, por assim dizer, e a maioria dos moradores já vivia aqui a décadas: poucas famílias se mudavam para cá ou iam-se embora.

Já nos primeiros dias conheci a maioria dos vizinhos. Meus avós, muito queridos por todos, moravam em uma casinha simples onde criaram seus filhos da melhor maneira que puderam.

Ao lado da casa deles só havia mato, à exceção da casinha da Dona Olímpia e do Seu Caruso: eles se conheciam havia mais de sessenta anos e eram vizinhos há pelo menos cinquenta, segundo me contaram. Nos dez últimos, porém, travavam uma pequena batalha judicial contra um supermercado: tendo comprado todos os terrenos da quadra, faltava só derrubar essas duas casinhas velhas para poderem construir seu mais novo empreendimento, meus avós e os amigos deles, contudo, estavam irredutíveis.

A batalha já se estendia por muito tempo, mas ninguém é obrigado a vender o que não quer, não é? Meu pai estava decidido a fazê-los aceitarem a proposta, creio que de olho na herança, e até convenceu meus tios a apoiarem-no, mas Seu Horácio e Dona Matilde não se preocupavam nem um pouco com essa história e viviam suas vidas simples e tranquilas como sempre haviam vivido. Eu apareci no meio dessa história toda, aliás, há bem pouco tempo.

Quando completei treze anos resolvi me abrir com o meu pai, que há pelo menos cinco me batia para que eu 'tomasse jeito de homem'. Até tentei, e tentei muito, mas o que eu podia fazer? Ele não entendia...

Conversei com minha mãe sobre isso e ela também não compreendeu: não ficou ao meu lado quando meu pai disse que se eu continuasse com essa 'bobagem de virar menina' ele ia jogar todas as minhas coisas fora e me expulsar de casa.

Foi um ano bem difícil, sinceramente: me escondi dentro de mim, vivendo num corpo que não era meu, e insisti na tentativa de agradar a ambos... Cada vez que eu fazia isso, no entanto, eu me matava um pouco mais. Não consegui mais suportar, aos quatorze falei que era trans e disse que precisava do apoio deles mais do que nunca: nunca tinha apanhado tanto na vida.

Quando vim morar na casa dos meus avós eu cheguei como a menina de quatorze anos que era e eles me aceitaram assim, sem nenhum problema. Não me incomodava em ser chamada pelo nome que meus pais me haviam dado, mas minha vó fazia questão de me chamar de flor. Flor... Meu avô, muito diferentemente de meus pais, jamais me repreendeu e nunca deixou de estar ao meu lado quando precisei. Disse a meu pai que se não me aceitasse de volta, se não tentasse me entender, ele é quem não o aceitaria em sua casa, mas não teve conversa.

Nessa época meu pai começou a temer que meu avô o tirasse do testamento e, embora não houvesse muito a ser repartido, ele já contava com o dinheiro para pagar algumas dívidas de jogo que todo mundo, à exceção de minha mãe, sabia que ele tinha acumulado.

Começou a vir à casa do vô Horácio com mais frequência para tentar convencê-lo a vendê-la logo, argumentava que a oferta dos empresários era um valor pelo menos duas vezes maior do que o que o imóvel valia. Meu avô sabia muito bem disso e agradeceu aos conselhos, mas colocou-o para fora dizendo-lhe para jamais voltar ali para tratar daquele assunto.

Minha avó ficou muito sentida com toda essa situação e adoeceu semanas depois. Ficou internada alguns dias, não resistiu: falência múltipla de órgãos e parada respiratória numa tarde ensolarada de Abril. Meus tios deram-se ao trabalho de seguir o protocolo: choraram, vestiram o luto, meu pai nem se dignou a isso. Disse tinha uma viagem de trabalho inadiável... Tudo bem, a única falta que sentiríamos seria a dela. Meu avô seguiu adiante, era um homem de fibra: tinha a mim, ainda, e tinha a seus bons e velhos amigos também.

Não que não ficassem juntos antes, mas depois do falecimento da vó Matilde eles não se desgrudavam: passavam a tarde toda jogando baralho, dominó, damas, xadrez, ou sei lá. Saíam juntos bem cedinho para caminhar e no fim de tarde iam ao parque.

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