Olímpia

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As luzes de natal enfeitavam os postes da cidade. As árvores brilhavam à minha frente, as guirlandas enormes e os presépios se faziam presentes também. Algumas pessoas enfrentavam a leve garoa, levavam os filhos para tirar fotos e conhecer o Papai-Noel. Ele ainda não chegara, porém, alguns dias mais...

Continuei andando, o vento cortava meu rosto: sempre gostei bastante das intempéries, me faziam sentir mais... vivo. Meu caminho era longo e o trilhei sem pressa alguma. Vi pessoas saindo às pressas de seus carros, não querendo que a chuva molhasse seus cabelos, seus casacos. Cobriam-se com blusas, protegiam-se com jornais... Era uma cena engraçada, para ser sincero.

Segui adiante e percebi a chuva ficando um pouco mais pesada. Talvez fosse mais prudente esperá-la passar ou o momento chegar. Descartei, contudo, ambas as opções e continuei seguindo meu caminho: estava encharcado e não me arrependia, a sensação era muito boa.

Depois de alguns minutos andando por ruas escuras, dobrei a última esquina e parei diante de duas casinhas bem antigas cercadas de mato alto por todos os lados: a quadra onde estavam erigidas era um grande terreno baldio e quem passasse desatento por ali poderia até dizer que tudo estava abandonado: sempre há quem julgue o livro pela capa.

No quarto do casal, porém, tudo estava arrumado e exatamente onde deveria estar. Nisto incluo Caruso, que abraçava Olímpia da mesma forma que fizera nos últimos sessenta e tantos anos: via-os claramente quando os relâmpagos iluminavam o cômodo. Estavam calmos e em paz: é assim, pelo menos na minha humilde concepção, que toda a humanidade deveria partir.

Não sabia ao certo quanto mais ela se demoraria e por isso resolvi me sentar em uma poltrona no canto do quarto e esperar: se sentisse sono eu, talvez, pudesse tirar um breve cochilo, mas Olímpia não se demorou.

Ficou surpresa ao me ver, mas não se assustou de forma alguma: sorrimos. Reconheceu-me e me aceitou, chegou até a acenar para mim. Sentou-se ao lado do marido, fez-lhe um último cafuné enquanto algumas lágrimas derramavam-se de seus olhos: ela o amara a vida toda e ele a respeitara como poucos teriam feito. Sabia disso, sentia isso.

Precisávamos partir e Olímpia concordou: deu-lhe um último beijo antes de se levantar. Ofereceria meu braço para que saíssemos, mas, naquele instante, senti uma velha e conhecida sensação: o arrepio que me dizia que alguém precisava de mim.

Não costumo interromper um resgate para atender a outro, mas às vezes eu posso atrasá-los um pouquinho para fazer uma viagem só: era claro que Olímpia não compreendia ainda, mas permaneceu ao meu lado enquanto eu aguardava com um sorriso sereno no rosto. Sugeri que ela se sentasse, novamente, aos pés da cama.

Aguardamos alguns instantes de eternidade até que Caruso, enfim, levantou a cabeça e olhou para a gente: sorriu para ela e para mim, abriu os braços e a convidou a entrar em casa.

Aquele não era seu dia, não estava nos planos do Destino, mas parecia que depois de sessenta e três anos de casados aquelas duas almas não conseguiriam se separar tão facilmente: não era a regra, é claro, mas no caso deles foi como tudo aconteceu. Depois de um longo abraço em sua esposa ele olhou para mim, mais uma vez, e me estendeu a mão: apertei-a, sorri e disse-lhes que era hora.

No portão eles olharam para a casa ao lado, quase como se esperassem mais alguém se juntar a nós. Senti que eles ansiavam por algo que não aconteceria, contudo não os apressei: tínhamos tempo, ainda. Caruso e Olímpia se entreolharam e, sob semblantes tristes, convidaram-me a continuar.

Andamos tranquilamente sob o tempo, aqueles senhores reviviam a juventude enquanto tomavam um banho frio de aguaceiro. Abraçaram-me quando chegamos à ponte das saudades e percebi seus olhos molhados de chuva e de choro: de mãos dadas eles se adiantaram, viraram-se e acenaram um breve adeus.

Abraços foram as últimas coisas que vi: primeiro o deles, por fim o da escuridão.

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