Marcelo

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A noite parecia querer cair tranquilamente como se nada do que ocorresse com as pessoas parecesse importar: e não importava mesmo. Ainda assim, demorei-me ali, na ponte, tentando enxergá-la por trás da neblina mesmo sabendo que ela não voltaria mais, nunca mais. Permaneci imóvel e esperei: sabia que não faltava muito, então.

Enquanto esperava, todavia, trabalhava freneticamente. Pessoas morrem o tempo todo, em todos os lugares e de todas as formas possíveis: estou sempre lá e sempre aqui. Aguardei, não sabia quanto tempo havia se passado já que o Tempo não se passa na ponte, e senti o dever me chamar.

Marcelo dirigia apressado, ultrapassando carros em lugares proibidos e furando sinais vermelhos: chegou à escola em tempo de ouvir o sinal bater. Esperou seus filhos em frente ao portão: depois de alguns minutos da correnteza incessante de alunos, reconheceu o mais velho e o mandou entrar no veículo e esperar no banco de trás. Eu estudava-o atentamente, sentado no banco do passageiro, onde havia estado nos últimos minutos intensos. Logo veio o outro menino e, por fim, a caçula: os três não questionaram, tinham aprendido a não desobedecer quando recebiam uma ordem dele.

Ele guiou por alguns minutos, o silêncio ensurdecedor dentro do carro era sólido. Tomou uma rua vicinal, seguiu uma estrada de chão alguns quilômetros milharal a dentro: parou próximo à plantação e virou-se para o banco de trás, encarando os filhos.

Eu costumava evitar estar presente quando esse tipo de atrocidade acontecia, mas ele trazia em seu peito um desejo de morte tão grande que fui compelido a acompanhá-lo durante todo o trajeto. Mantive, então, uma distância segura: jamais conseguiria presenciar aquilo que estava prestes a acontecer.

Escutei os disparos, os gritos e o choro, uma sequência que não demorou a cessar. Quando as crianças vieram a mim indiquei-lhes o caminho para que seguíssemos em frente e insisti para que não olhassem para trás: viam no meu um rosto familiar e, embora não entendessem o que estava acontecendo, talvez sentissem que podiam confiar em mim e me acompanharam sem questionar. Olhei por sobre os ombros uma última vez, apenas para ver Marcelo ateando fogo ao veículo. Não que não desconfiasse antes, mas naquele momento tive a certeza de que em breve teria de retornar para recolhê-lo.

Depois de darmos alguns passos, e pouco antes de chegarmos à ponte dos inocentes, as crianças já corriam e brincavam ao meu redor, esquecidas de tudo o que acontecera: disse-lhes que se atravessassem encontrariam sua mãe, ela os estava esperando do outro lado.

Ao chegar ao fim do caminho, Joaquim, Marcelo e Antônia me deram um abraço e seguiram adiante: deram alguns passos e pararam para acenar um adeus enquanto eu observava a neblina envolvê-los e levá-los dessa existência para sempre. Nada falaram durante todo o caminho, não fizeram perguntas: estavam juntos e isso talvez fosse o suficiente. Tive certeza de que não entenderiam, creio que o conceito de morte não faça parte dos problemas infantis.

Ainda tinha trabalho a fazer, mas Marcelo que esperasse. Demorei-me tanto quanto poderia, aguardei longos minutos de tempo nenhum diante da ponte, imaginando se a família já estava reunida.

Sempre soube, contudo, que o pensamento de que há algo depois da morte é inconveniência de uma humanidade que se acha importante demais para que suas existências tenham um fim. Eu, sinceramente, sei que não há lá algum, mas as crianças não precisariam ouvir isso de mim: gostaria, inclusive, que algumas pessoas tivessem uma segunda chance de serem felizes. Outras...

Marcelo olhava para o próprio cadáver caído próximo ao veículo em chamas, a arma jazia ao lado do corpo: observava-se fixamente, como se estivesse em transe, e só desviou o olhar quando me aproximei e disse que já era passada a hora de partir.

Ninguém ficava para trás, mesmo que quisesse: levava-os até a ponte, gostassem ou não, e eles desapareciam dessa existência para toda a eternidade. Virei-me e ele se obrigou a me acompanhar.

Pedi-lhe que calasse a boca no instante em que começou a fazer perguntas: senti seu medo, seu arrependimento, senti nojo ao provar do gosto agridoce que invadia seu peito. Observei-o atravessar a ponte a passos trôpegos, o desprezo que me coube trouxe-me vergonha quando me acalmei: o que o Destino pensaria de mim se soubesse que andava tomando parte nos assuntos que não me diziam respeito? Marcelo ansiava por perdão a cada passo que dava, mas era tarde demais, para ele e para todos.

Desapareceu, mas deixou de herança a devastação da barbárie que causou: haveria, é claro, quem dissesse que Marcelo pagaria pelo que fez, mas não poderiam estar mais enganados.

Não existe justiça após a morte. 

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