Pedro

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Sentado sob o Sol do fim de tarde observando os veículos passarem em altíssima velocidade a três ou quatro metros de mim estava cheio de lembranças.

Placas assinalavam o limite da via em sessenta, mas muita gente passava a quase cem e tudo bem: ninguém ligava para isso e, desde que o radar não pegasse, não teria problema algum. Mas não era com isso que ocupava minha mente.

Recordei, naquela tarde, das tantas pessoas que já resgatara em circunstâncias em que o respeito poderia muito bem ter salvado várias vidas, mas fazer o quê? As pessoas nem sempre têm segundas chances.

Lá vinha Pedro, já podia vê-lo ao longe: em seu colo o cachorrinho que havia anos era seu companheiro inseparável. Observá-lo andando calmamente me fez ponderar se ele por acaso poderia imaginar o que aconteceria dentro de alguns minutos: sei que não e sei que não era a primeira vez que levantava esse tipo de questionamento, mas tudo poderia ser tão diferente se eles sequer suspeitassem...

Claro que não cabe a mim considerar tais possibilidades, e sei melhor do que ninguém que não sou eu quem escolhe a quem resgato: tal pensamento, talvez, tivesse evitado a partida precoce da mãe desse menino, o sofrimento que ele tivera de enfrentar tão cedo e aquele pelo qual seus entes queridos teriam de passar novamente.

Ah! Aquela Sexta-Feira, aqueles jovens... Imprudentes, negligentes, bêbados. isso de forma alguma ameniza seu crime, mas sempre houve muita gente que pusera a si e aos outros em risco mesmo tendo plena consciência e total controle sobre o que estavam fazendo.

Uma quadra separava Pedro e eu: ele andava tranquilamente, olhou para os dois lados antes de cruzar a rua. Escutei um barulho característico de motor, a muitas quadras de distância, e sabia que a outra personagem dessa história também estava a caminho: a distância entre nós diminuía. O cãozinho em seus braços não estava preso à corrente e seu dono só perceberia quando fosse tarde demais.

Em um breve momento de descuido do rapaz ele pulou e correu em direção à via. Pedro o seguiu, instintivamente: não deixaria que seu melhor amigo se pusesse em risco daquela forma. Paçoca, porém, conseguira atravessar diante dos carros e já estava do outro lado da avenida sem um arranhão sequer, Pedro não: foi atingido e arremessado a vários metros de distância.

Com o impacto, o veículo avançou sobre o canteiro central e acabou por perder o para-choques dianteiro: não atingiu mais ninguém, felizmente, mas o motorista fugiu sem prestar qualquer auxílio.

Esperei pelo menino, mas sabia ser em vão: vim apenas acompanhá-lo, senti que devia isso a sua mãe. Não fiquei para ver a ambulância chegar ou assistir aos primeiros socorros, também não esperaria na sala de cirurgia enquanto os médicos se revezaram durante longas horas para tentar salvar sua vida.

Respirei fundo e fechei meus olhos por um segundo: quando os abri, a Sexta-Feira já amanhecia e ele ainda respirava com a ajuda de aparelhos. Sentei-me ao seu lado e não demorou quase nada para que ele acordasse e me reconhecesse: as lágrimas escorreram, como de praxe, e o ajudei a ficar em pé para seguirmos nosso caminho.

Queria que as coisas fossem diferentes, mas isso está fora da minha alçada. Quis reconfortá-lo, no entanto eu nunca fui muito bom com palavras. Chegamos à ponte do adeus e pensei comigo mesmo que ele logo encontraria sua mãe, do lado de lá da escuridão: o pensamento fortuito se dissipou diante dos meus olhos como a consciência de Pedro em meio à neblina. Não devia me iludir com tais besteiras.

Ele se foi, enfim, mas jamais seria esquecido. 

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