— O que foi? – Lavínia arqueia as sobrancelhas para mim.
— Só pensando em como seria se eu tivesse irmão mais novo.
— É cansativo. Mas tem seus momentos bons.
Pedro acha cansativo também?
Isso explica porque, desde o acontecimento, ele não trocou mais do que três frases comigo?
— Essa semana meu irmão menor fez um cartão na escola para mim. O português estava horrível, mas a mensagem era linda. Então, estou de bem com a vida com esse lugar. O que, claro, vai mudar daqui um ou dois dias, quando ele grudar mais um chiclete no meu cabelo ou roubar meu pedaço do bolo de chocolate...
— É engraçado ter uma família grande e não viver nada disso.
— Acho que é mais triste. Família é uma desgraça, às vezes, mas não posso reclamar da minha.
— Acho que ninguém espera que eu reclame da minha.
— Você sabe o que dizem, né? Com grandes poderes vem grandes responsabilidades.
Rio porque não esperava que Lavínia citasse algo da cultura nerd. E, então, paro de rir, porque esse é o tipo de pensamento que não deveria ter. É reafirmar um estereótipo de mulher, talvez até de mulher negra, sem se dar conta. E perceber isso, perceber que essas coisas me escapam, não torna a sensação melhor – na verdade, a situação fica ainda pior.
— Você vai fazer ENEM pra que curso? – pergunto, colocando o prato de comida no micro-ondas.
— Engenharia. Se tudo der certo, civil.
— Meu primo é engenheiro civil. Ele ganha dez mil por mês, e não é das empresas da minha família.
— Essa é minha meta de vida. – Ela sorri no exato momento que o micro-ondas apita. – E você?
— Não consigo me imaginar em nenhum lugar que não seja jogando vôlei. Se não der certo...
— Você não precisa de um plano B. – Ela pega o prato, quando o estendo. – É uma Vale. Sua irmã não trabalha, não é?
— Minha irmã só tem o ensino médio – suspiro. – Estou cansada disso.
— De quê?
— Das pessoas acharem que, por eu ser uma Vale, não preciso provar meu valor.
— Você precisa provar no vôlei. Talvez, por isso, o esporte seja seu sonho.
Nunca tinha parado para pensar por esse ponto de vista. E essa fala me faz perceber que gosto mesmo de Lavínia – ela é uma garota que traz paz, muito diferente de outra garota que gosto. Não estou apaixonada por nenhuma das duas e isso é óbvio. Mas, se pudesse escolher, sentiria atração física pela negra a minha frente.
Essas coisas não se escolhem.
E é claro que meu desejo está todo destinado a uma garota que não tem o menor comprometimento com o que quer que seja, além de si mesma.
— Talvez. Mas é insuportável que todo mundo sempre espere coisas de mim.
— A sociedade sempre espera coisa demais das mulheres, Daf – ela diz, sorrindo. – De você, uma imagem perfeita; de mim, o sexo fácil da negra. De todas, o silêncio. Temos duas saídas: ou acatamos e dizemos amém, ou mandamos a sociedade se foder. As duas vão trazer consequências, mas seguir a segunda nos faz ficar mais próximos de algum vestígio de felicidade.
— Você acha?
— Quanto mais você concordar com a sociedade, mais coisas ela pedirá em troca. Mais silêncios nossos terão que ser feitos. É infinito porque a mulher que eles querem é uma mulher de plástico, plácida, plena, que não existe. A gente se mata tentando alcançar esse posto e nunca vamos chegar lá. É uma luta fracassada.
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Relicário
Novela JuvenilVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...
TRINTA E QUATRO
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