TRINTA E QUATRO

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Há outdoors meus em todos os lugares da cidade. Por um momento de confusão, encaro a garota estampada nas propagandas e me pergunto de onde a conheço. Há resquícios que nos aproximam por baixo da maquiagem pesada e escura, dos cabelos bagunçados e arrepiados. É algo no olhar verde desesperado, gritando por socorro em silêncio enquanto a boca sorri placidamente para a câmera. Então, percebo: sou eu.

Sou eu da forma que nunca quis ser.

Pisco os olhos com rapidez tentando afastar as lágrimas. Devia ter imaginado que a confusão em que meu pai acha que me meti o faria adiantar essa publicidade – agora todos da cidade tem o que falar. O importante não é evitar que as pessoas falem de mim – é fazê-las falar pelo motivo certo. Por mais que os motivos certos não contemplem o que eu acho que devia contemplar.

— Dafne ficou bonita – Fernando diz, ao meu lado, quando saímos da escola e damos de cara com o primeiro outdoor, bem em frente ao Eliodora.

Não consigo me mover, então nós dois ficamos parado na calçada enquanto todos os alunos do colégio saem de suas aulas. Eles também se acumulam na saída. Há um silêncio no primeiro momento, mas dura menos de dois segundos antes de metade da minha sala começar a me zoar. Os garotos dizem que nunca me viram tão bonita. As garotas dizem que estou desperdiçando meu tempo no esporte.

Eu quero dizer a eles que não interessa.

Não sou eu. É só uma imagem bem-feita que não representa um milímetro que quem sou, de quem quero ser. Não importa. Todos meus colegas só ligam para a imagem. Às vezes me acho velha demais para ser adolescente.

— Agora você só precisa fazer um ensaio de lingerie – um dos garotos diz.

Todos riem.

Menos Fernando e eu. E é por isso que ele é meu único amigo.

— Fernando não entende – ele resmunga, se balançando nos pés.

Eu também não, quase sorrio, mas tudo em mim está congelado, mesmo que o sol acima de nós esteja tão laranja que cega. Pisco com mais força, porque a claridade não ajuda a espantar as lágrimas. Não quero chorar na frente deles. Não posso chorar na frente deles. Essa é a hora que preciso pensar como meu pai. Essa é a hora que preciso ser uma Vale.

Por isso, apenas resmungo elogios, seguro a mão de Fernando e o puxo para sair dali, o mais devagar que consigo. Se eu correr, todos saberão que estou desesperada. Se eu fugir, só serei mais uma fraca. Então, finjo que está tudo bem. Finjo tão bem que, antes do quarto outdoor, o único que se aproxima um pouco do que sou – onde estou segurando uma bola de vôlei que combina pouco com o salto que me obrigaram a colocar nos pés – já consigo respirar sem sentir o peito ser esmagado por mãos invisíveis.

Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Emily sumiu. Ainda não conversei com meu irmão. Não consigo me encarar no espelho. E agora sou obrigada a me ver em todos os lugares. Ponte Belo sempre foi um lugar que me sentia segura, porque sabia que as pessoas que importavam me protegia. Mas agora a sensação que me domina é bem próxima de pânico, porque sei que, ainda que quisessem, ninguém poderia me proteger.

Estou no meio do furacão.

Tudo está sendo revirado e eu mesma não consigo colocar os pés nos chão. Sinto falta de quando minha única preocupação era não me machucar num jogo. Sinto falta do esporte na minha vida. Sinto falta da paz que tinha dentro da quadra. Acho que é por isso que, quando deixo Fernando em sua casa, ligo para a primeira pessoa que me vem a mente.

Queria que fosse meu irmão, mas sei que ele não poderá me atender. Além disso, não sei se estou pronta para ter A Conversa. Não nos falamos desde que ele me acompanhou à reunião com Olavo e meu pai. Ele está ocupado e sei disso – o período se encaminha para o fim e há uma pilha de provas e trabalhos sobre sua escrivaninha. Há post-its espalhados em todos os lugares, também, numa tentativa de ele de arrumar seus pensamentos para artigos que precisa fazer e teses que precisa avaliar. Mesmo assim, mesmo sabendo que é um momento ruim para ter Pedro por perto, sinto tristeza de só ter sua presença como um fantasma sem forma, mas muito barulhento, perambulando as madrugadas em sua casa.

RelicárioWhere stories live. Discover now