TRINTA E QUATRO

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Lavínia demora quase vinte minutos para chegar à casa do meu irmão. Ela não pergunta porque a chamei num horário tão ruim quanto um pós-almoço. Ela não comenta sobre a bagunça de papel que Pedro deixou para trás, provavelmente ao estar atrasado para alguma aula. Ela só se manifesta quando ligo o ar-condicionado:

— Eu queria ser rica só para ter isso.

Deixo uma risada escapar e jogo a mochila nos pés do sofá, me jogando nele logo depois. Lavínia é mais comedida e seria engraçado, se eu não tivesse tanta angústia dentro de mim.

— Você estava ocupada? – pergunto.

— Entregando currículos.

— Ah, nossa, estou te atrapalhando?

— Tá brincando? – Ela coloca a mochila nos pés. – Até o diabo acha que eu mereço uma pausa.

— Você tá com fome?

Lavínia dá de ombros, então caminho até a cozinha e vejo o que Pedro deixou na geladeira. Geralmente, almoço na rua, mas Pedro é mais chato do que eu para comida. Pego as pequenas conservas que ele fez e coloco sobre a mesa. O cheiro de lasanha deveria me fazer salivar, mas meu estômago embrulha.

— Eu consegui uma bolsa para o cursinho da sua escola – ela fala, sentando-se na cadeira. – Começo hoje.

— Não sei se dou parabéns ou pêsames.

— Quanta animação para fazer o melhor cursinho do interior de Minas...

— Eu passo dezesseis horas naquela escola. Não aguento mais.

Ela dá um sorriso e balança a cabeça.

— Às vezes eu queria que meus problemas se resumissem a isso. Não é uma crítica – completa, quando a olho. – Acho que sempre vamos reclamar, independente da vida que temos. Mas acho que me sentiria bem reclamando de uma educação de qualidade. Minha escola não tem água por metade da semana.

— Não quis parecer egoísta – franzo o cenho.

— Eu sei. Você só não conhece o outro lado da ponte. Tá tudo bem. Seu irmão tem uma casa bem legal, hein? Quer dizer, é bem menos opulenta do que imaginei.

— Meu irmão não é rico.

— Mas ainda é um Vale.

É, penso. E essa é a frase que resume tudo. Não importa quem sou, os meus gostos, o que quero para minha vida, meus planos e ambição. Nada disso importa porque meu destino foi traçado antes de nascer. Foi traçado quando meus avôs se tornaram tão ricos e poderosos que dominaram a cidade em poucos anos. Não é culpa deles no que família se transformou, mas não quer dizer que eles não sejam responsáveis.

Responsabilidade é uma palavra complicada.

Para Lavínia, responsabilidade é conseguir um emprego, agora que está de férias do vôlei, para ajudar as contas de casa. Ela é mais velha que alguns de seus irmãos, então provavelmente tem responsabilidade de cuidar deles. Ela é um exemplo para o caçula como Pedro é meu exemplo. É outra vida, outro lado da ponte, outros dilemas e cobranças, mas, ainda assim, é uma vida que importa, que devia ser mais vista, que devia ter oportunidades de ter um destino diferente.

Minha responsabilidade é continuar o legado que me pertence. É não manchar a imagem que as gerações anteriores da minha família construíram. É não só estar dentro do padrão, mas preservar o lugar que me pertence. É ser bela, recatada, do lar. É ser um exemplo para uma sociedade que todos dizem que me representam, mas que eu não me sinto representada. E que, com certeza, não vai querer me representar se descobrirem quem eu sou, por trás da imagem que tenho que carregar.

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