É os olhos verdes a minha frente que não me deixa surtar.

Abro a boca para falar alguma coisa, qualquer coisa, mas as palavras não chegam. Engulo em seco. Emily também fica em silêncio.

— Você não tem aula amanhã? – Pedro pergunta.

Não há nenhum indício do que ele pensa ou sente com o que viu. Não há nada na expressão dele. É sua voz normal, como sempre fala comigo, na mesma entoação. Engulo em seco, porque, de algum jeito, é isso que mostra que a situação é estranha e diferente. Deveria ter alguma coisa ali. Deveria ter, ao menos, a pergunta silenciosa de "o que vocês estão fazendo?". Mas Pedro, que nasceu questionando todas as verdades e opiniões, não pergunta.

De certo modo, isso é pior do que qualquer reação que ele pudesse ter.

— Tenho.

Ele assente e se afasta.

Olho para Emily, mas ela dá de ombros e levanta as mãos. Não consigo me mover. É ridículo não conseguir me mover, mas meus pés não obedecem a meu comando. Continuo parada olhando as costas do meu irmão, enquanto ele se afasta até a cozinha, abre a geladeira, pega a garrafa de água.

Pedro raramente acorda na madrugada. Pedro nunca bebe água gelada.

Quero falar, mas não tenho palavras. Não há nada em mim além de prisão. O momento de liberdade se foi. Sinto por ele, sinto pelas sensações que perdi. Sinto por tudo. Sinto tanto.

Preciso parar de sentir.

— Eu não vou falar uma segunda vez, Dafne. – Ele passa pela sala de novo, sem parar dessa vez. – Amanhã será um dia longo e você precisa estar bem, porque depois da escola vamos conversar com nosso pai e com Olavo.

O peso no estômago aumenta. Por causa da imagem que a fala de Pedro evoca na minha mente: meu pai. Se ele souber disso, se ele souber de tudo que aconteceu, de tudo que eu sou, nunca vou ser perdoada. Se ele me vir como meu irmão me viu...

Preciso saber se Pedro ainda me ama, se ainda é capaz de me amar.

Mas não consigo falar nada.

Minha garganta está fechada e quase não respiro. Pedro não diz mais nada. Pedro também não espera que eu saia da sala, para ele voltar ao quarto. Ele nunca faria isso. Ele estava sendo o Pedro que sempre foi. O Pedro que eu amo. Sou eu que estou diferente e não consigo compreender sua reação.

O pavor chegou.

A liberdade assusta e não me deixa me mover.

Eu não consigo respirar.

A mão gelada de Emily, no meu pescoço, me tira do transe. Dou um pulo, sem sair do lugar, e ela se afasta arregalando os olhos para mim.

— Desculpe – murmuro e não sei pelo que estou pedindo desculpas. Não cabia desculpas no momento que a gente teve e isso me faz dizer "desculpa" de novo.

Emily balança a cabeça e revira os olhos, mas quase sorri. Antes que ela diga alguma coisa, e estou certa de que ela diria muitas coisas, corro para o meu quarto sem olhar para trás, sem parar até bater a porta às minhas costas.

O abajur ilumina as paredes com formas ainda mais bizarras, depois de tudo. Meu corpo cai sobre a cama e eu me encolho, o enjoo aumentando tanto que só me resta fechar os olhos com força, muita força, para apagar tudo o que minha mente sintoniza ao mesmo tempo. Há vozes, acusações, risadas. Há as regras da minha casa. As piadas de Paulo sobre homossexuais. O nojo com que todos eles tratam o que não é igual. Há minha própria opinião sobre o assunto, que não é muito melhor do que aquilo que me invade.

Não parece certo.

Não parece certo eu achar certo, mesmo tendo sido ensinada a achar errado.

Estou sufocada e quero gritar, um paradoxo e tanto para suportar. Eu sou um paradoxo. Eu não gosto de ser um paradoxo. Quero ser igual à maioria, quero ser igual ao que minha família espera de mim. Sei que eles podem ser rígidos e preconceituosos, mas não quero ser isso. Não quero ser lésbica. Não quero ser mais diferente do que sempre achei que era.

Não queria ter descoberto que sou.

Tenho vontade de chorar, mas não choro. Aperto os olhos com força, tentando fazer tudo sumir na minha mente. Tentando abraçar a escuridão, calma e pecadora para me proteger de tudo o que sinto e não sei sentir.

Mas o preto não penetra minha bolha, por mais que me esforce para isso.

Tudo o que me cerca é amarelo-esverdeado.

Sempre será amarelo-esverdeado depois de hoje.

Então, finalmente, começo a chorar.

ESPERO TANTO PRA ESCREVER ESSE CAPÍTULO, nem acredito que ele chegou <3

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ESPERO TANTO PRA ESCREVER ESSE CAPÍTULO, nem acredito que ele chegou <3

A descoberta da sexualidade raramente é feita sem grandes conflitos, principalmente para quem não está dentro dos padrões heteronormativos. É cruel, opressor e destruidor, em alguns pontos, tão libertador quanto aprisionante em alguns casos. Dafne está vivendo isso na pele. Mas confesso que tenho sentido dor como se fosse eu hahah

O que vocês acharam? Do beijo, de Emily, de Daf, de Pedro, enfim, de tudo?

POR FAVOR, QUERO COMENTÁRIOS

felicis e espero que tenham curtido o carnaval com responsabilidade - eu tava só atrás do bloquinho unidos da netflix, e vocês?

Beijos cafeinados.

ps: Hoje, 14 de fevereiro, dia de São Valentim, é aniversário de Emily - a ironia pronta de alguém tão não romântica nascendo no dia mais romântico do mundo. Achei que gostariam de saber tsc.

RelicárioWhere stories live. Discover now