Capítulo 20

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Gael

Sem jeito, Maria Encrenca conversou com Daniel e pediu-lhe desculpas. Quanto a ele, disse que não tinha do que desculpá-la, porque também havia errado. Os dois ficaram de conversinha por algum tempo. Deram-se tão bem que pareciam ter se esquecido de mim. Eu não iria me intrometer no papo deles e dizer "oi, galera, também tô aqui, falem comigo!", de forma alguma.

Portanto, quando encerraram o assunto, Daniel se virou para mim e me perguntou se o Sr. Otávio implicaria caso ele fosse de mesa em mesa tentar vender as cartelas do bingo. Respondendo-lhe, falei:

— Claro que não, ele é de boa!

De imediato, Daniel se levantou da cadeira. Olhando para o lado, bebeu da cerveja e avisou que ainda voltaria. Retirou-se em questão de segundos. Por conhecê-lo há anos, sabia que ele não era de abandonar a bebida sem mais nem menos. Pensando nisso, virei-me para trás e o observei, tentando entender o motivo da pressa.

Durante os instantes em que o vi, ele conversou com algumas pessoas. Foi de mesa em mesa, como havia falado. Diante disso, convenci-me de que eu estava errado, porque Daniel parecia focado nas vendas das cartelas. Ao olhar para a frente, deparei-me com Maria Encrenca e percebi que estávamos a sós.

Passando de uma cadeira para a outra, ela se aproximou de mim, o que, no primeiro instante, me deixou desconfortável. A meu ver, Maria Encrenca era uma caixinha de surpresas. Dela, eu poderia esperar qualquer tipo de reação impulsiva. Desde gritos repentinos à instruções bizarras.

Puxando conversa, ela falou sobre o quão embaraçosa aquela situação poderia ser para nós dois, o que me fez acreditar que estivesse baixando a guarda. Porém, completou:

—... Mas como diabos eu ia saber que tu já tava na fila, hein? Ninguém me disse nada, tu poderia ao menos ter se explicado antes de sair ou...

Interrompendo-a, eu lhe informei do quão histérica ela parecia na data em questão. Disse-lhe que até pensei em conversar com ela, mas temi que as coisas piorassem, pois, no meu ponto de vista, algumas pessoas estavam com medo dela.

Por um instante, Maria Encrenca ficou quieta. E quando voltou a falar, abaixou a voz:

— Tá, então eu te peço desculpas por ter bancado a louca naquela dia.

Devido à mudança significativa em seu tom de voz, vi-me desacreditado diante das palavras dela. Observando-a, procurei em seu rosto alguma expressão que me confirmasse sobre a veracidade do arrependimento, mas um tremor ou outro nos lábios não era o bastante para me levar a uma conclusão.

Constrangida, ela se incomodou tanto com a minha demora em respondê-la quanto pelo modo que eu a olhava. Diante disso, pediu-me para parar de encará-la, pois estava começando a ficar assustada.

Por não saber se aquelas desculpas eram fajutas, neguei-lhe o pedido. Achava que assim poderia descobrir se a intenção dela era boa, pois, caso não fosse, provavelmente eu teria que aturar seus gritos. No entanto, para a minha surpresa, Maria Encrenca manteve a calma e se desviou dos meus testes. Como consequência, mudei de opinião e acatei o que me foi dito.

Após aceitar as desculpas, fui chamado de retardado devido ao drama que criei diante daquela situação. Embora não conhecesse a Maria Encrenca tão bem, acredito que a forma como a conversa foi conduzida tenha me motivado a enxergá-la sob outro ponto de vista. Sendo assim, também me desculpei. No fundo, eu queria acreditar que, talvez, naquela manhã, durante o nosso encontro inusitado, ela só estivesse tendo um dia ruim.

Sendo sincero, é possível que eu nem me recordasse do rosto de Maria Encrenca caso tivesse lhe dado alguma explicação na lotérica. É possível que, ali, naquela mesa, de frente um para o outro, eu só conseguisse lembrar dela como a mulher que me forneceu uma capa de chuva durante a tempestade.

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