Parte 1: Branco 17 - Atrás do olho-mágico

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Marco costurou o caminho do hotel até o Centro, largou o carro num estacionamento e, dando a mão para Marisa, disparou pelas calçadas ainda úmidas de chuva. Seguiram por uma avenida e, ao final dela, na convergência com o viaduto que se equilibrava sobre o vale, deram com o frontispício iluminado do Teatro Municipal. Estátuas renascentistas pousavam como anjos na fachada que se destacava contra os edifícios ao fundo e um céu sem estrelas. O saguão se enfeitava com joias art nouveau e minúcias barrocas, numa profusão de mármore, bronze, espelhos e vitrais.

- Chegamos bem na hora - um Marco muito satisfeito anunciou. - Achei que a ópera seria algo diferente para comemorar sua formatura. - E vendo que Marisa se alvoroçava: - Mas calma, talvez você nem goste tanto..

Ela o silenciou com um beijo.

Ocuparam um camarote perto do palco. Marisa admirou as florzinhas de murano no parapeito do balcão e olhou para cima. A abóbada ornamentada lá no alto sustentava o lustre que pairava como um sol acima das poltronas vermelhas, oferecendo à vista a radiância de milhares de pingentes de cristal.

O espetáculo logo teve início, e o palco ganhou vida com um fundo vermelho e uma residência japonesa à sombra de uma cerejeira. Começava a tragédia de Madame Butterfly, protagonizada por Cio-Cio-San, uma gueixa de quinze anos de idade vivendo no Japão do século dezenove. Ela se apaixonava por Benjamin Pinkerton, um oficial da Marinha americana em visita ao país, que se unia a ela num casamento de conveniência.

O oficial depois partia para os Estados Unidos com falsas promessas de que voltaria em breve. Nesse meio tempo, Pinkerton desposava uma americana, sem suspeitar que Cio-Cio estava grávida. A gueixa esperava pelo regresso dele durante três longos anos. Pinkerton acabou voltando, mas junto com a nova esposa, para buscar seu filho. Desesperada, Cio-Cio despedia-se da criança e cometia harakiri.

À saída do teatro, enquanto caminhavam até o estacionamento, Marisa estava quieta. Tinha ficado comovida com a apresentação. Na época em que se passava a história, não era incomum oficiais da Marinha americana visitarem o Japão e lá casarem com japonesas, abandonando-as quando retornavam aos Estados Unidos - ao que constava, Madame Butterfly era real.

As calçadas estavam secas, as ruas se enchiam de gente e risadas pontuavam as conversas nos bares. Com o termômetro marcando trinta e um graus, o ar era como um manto viscoso. Marisa contemplou a meia lua com um halo de nuvens esgarçadas - parecia um fantasma enrolado em trapos. Com súbita inquietude, apertou a mão de Marco.

Como de costume, ele parou o carro na esquina do prédio dela. Marisa guardou a peruca na bolsa e apanhou umas apostilas no banco de trás. Na manhã seguinte tinha um teste simulado e, como sempre, ainda precisava finalizar suas anotações antes de dormir. Deteve-se com a mão no trinco da porta e fitou Marco. Num rompante, largou as apostilas, beijando-o em um ponto entre o maxilar e a boca. Aí o abraçou forte.

- Ei... o que foi? - ele perguntou, entre surpreso e lisonjeado.

- Obrigada, Marco. Por tudo.

Não queriam se separar. Suas mãos disseram isso quando se entrelaçaram. Depois Marco tocou o rosto de Marisa. Ela roçou a face na dele. Fitaram-se enquanto suas mãos voltavam a se encontrar, os dedos se entremeando, imprimindo carícias na palma e no dorso, entremeando-se de novo - acordando o corpo. Calor, arrepio, quente, frio. Todas as coisas imaginadas. Seus corpos não podiam unir-se naquele momento. Suas mãos, sim, e era isso que diziam.

Está vendo como eu afago a sua carne no monte de Vênus aqui embaixo do polegar? É que eu queria afagar você inteira desse jeito. Está vendo como a ponta do meu indicador traça o contorno dos seus dedos, um a um, subindo e descendo assim? Isso me lembra as curvas do seu corpo, que eu queria tanto beijar agora, como orvalho na pétala da sua pele... colhendo com a boca o botão no seu seio e a flor desabrochada na planície mais embaixo, até você estremecer dentro do vestido...

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora