Parte 3: Vermelho 1 - Virando a página

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PARTE 3: VERMELHO - O BRANCO E O NEGRO CONVERGEM

Inverno, julho de 2013


CREEEEK.

A roda da fortuna está desenferrujando de novo. Depois de um verão sem alegria e das inquietações do outono, descortina-se a página ainda em branco do inverno. É julho, tempo de férias e de arejar a casa de dentro e de fora. A roda gira. A roda gira girando a vida. O que está em cima vai para baixo. O que está embaixo vai para cima.

Pela primeira vez em muitos meses, Marisa sentia-se otimista com o futuro. Quando a Doutora Spitzer declarou que seu amor por Marco não era mais que um coquetel de hormônios, tinha duvidado. Achava que nunca conseguiria esquecer Marco porque ele era perfeito. Gradualmente, porém, Marisa percebeu que sua dor resultava não só da perda de um homem real, mas sobretudo da perda de uma idealização que havia feito dele.

Se existia um sentimento devastador, era a decepção. A de Marisa não encontrava palavras. Desde o início, ela havia admirado a força e a integridade de Marco. Mas diante do primeiro obstáculo, ele se mostrou fraco e covarde, dando-lhe as costas no momento em que precisou de seu apoio. Ele marcou encontro em um bar do Centro após a discussão dela com a mãe. Um bar impessoal, barulhento. Ele disse palavras bonitas mas já havia se distanciado. Obviamente nunca tencionou consertar a situação com a mãe dela. A indiferença com que passou a tratá-la de uma hora para outra só podia significar uma coisa: o sentimento dele era passageiro. Talvez já estivesse até em outra relação. Com o descaso de quem trocava de roupa. Com a naturalidade de quem nunca realmente se importou com ela. E isso doía mais que tudo.

Sabe o que é se abrir para uma pessoa? Abrir o coração e o corpo, os sonhos e pensamentos. Dedicar energia e tempo, e a a melhor parte de si, a mais generosa, a mais compreensiva, a mais terna. E um dia ouvir: eu nunca te amei, foi um engano. Ele não disse isso com palavras, mas a mensagem foi clara. O clichê. O problema não é você, sou eu. O que ele quis dizer não foi que não servia para ela. Quis dizer que ela não servia para ele. Ela e sua pouca idade, sua inexperiência, sua mãe maluca. Provavelmente Marco concluiu que era mais fácil arranjar outra mulher e tocar a vida sem aquela pilha de complicação. Por que correr riscos desnecessários? Ele era atraente, bem-sucedido, inteligente, e podia ter quem quisesse. Ela não correspondeu à expectativa.

Imaginava-o com uma nova namorada: mulher linda, bem-vestida, com uma carreira invejável. Moraria sozinha numa cobertura, e no cérebro dela moraria uma biblioteca inteira para deleitar Marco. Ele sorriria para ela enquanto os dois jantavam à luz de velas e admiravam a vista da cobertura. Depois iriam para a cama... Esses pensamentos assombravam Marisa, roubavam-lhe o sono e o apetite. Ela ficou pele e osso.

Marisa havia passado o verão na praia, entrevada sob o sol sem de fato estar ali, entretida demais com a própria ferida. Uma noite, sem conseguir dormir, foi dar uma volta. Caminhou na beira d'água por horas, ouvindo o sussurro da areia aveludada que pontuava seus passos, até que a terra refletiu o céu e o dia chegou. Marisa sentou num tronco e assistiu ao mundo despertar: o orvalho pintava as casas, as árvores se espreguiçavam e a vegetação rasteira bordava rendilhados na areia. O azul sonolento foi riscado pelas asas e pelo trinar dos pássaros. A maresia borrifou perfume no ar. Vendo o sol lançar sua rede dourada nas águas, Marisa enxergou a beleza até então ignorada. Enxergou dentro e fora. Escutou dentro e fora.

Foi quando respirou fundo e deixou a tristeza fluir. Sem mais agarrar-se a ela, porque a tristeza era uma rocha muito pesada que arrastava a alma para o fundo do mar. E sem resistir tampouco - aceitar e encarar sem medo. Assim a tristeza fluiu, fluiu para fora dela como um rio turvo clareando à medida que seguia seu curso. E, quando ela menos esperava, a última gota de água turva se escoou e Marco afinal ocupou seu lugar no passado. Marisa não precisava mais idealizar um príncipe encantado para lhe dar amor, porque o príncipe estava dentro dela.

VERMELHO: Uma História de AmorOnde as histórias ganham vida. Descobre agora