CONSULTA 01

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— Você gostaria de falar exatamente o que aconteceu naquele banheiro?

Há alguma janela aberta na sala. Eu sinto a ventania fria vindo de fora.

Minhas mãos estão coladas e entre as pernas. Eu não me sinto confortável aqui. Não me sinto confortável em mais nenhum lugar.

Essa é minha primeira consulta com a doutora Kristal. Ela é uma das melhores psicólogas de Saint Louis. Pelo menos foi o que o folheto dizia, segundo minha mãe. Meus pais estão gastando todo o dinheiro deles comigo. Eles sempre fizeram isso. Sempre me senti horrível por causa disso. Pensei que depois daquele dia, eles só precisariam se preocupar com si mesmos.

Como pude cometer um erro tão besta? Eu sou a pessoa mais patética do mundo por ter falhado nisso. Era algo tão simples. Talvez, se eu enxergasse, eu teria pegado o remédio certo. Então, eu não estaria aqui. Talvez, se eu enxergasse, eu nem teria feito isso. Eu teria passado meu primeiro ano do Ensino Médio bem. Eu teria feito amigos. Eu teria me encaixado.

Você quer saber o que aconteceu naquele banheiro?

Começo a contá-la exatamente o que aconteceu.

Eu entrei. Fechei a porta. Não havia chave. Nunca houve chave na porta do banheiro. Mas aquilo não importava, já que meus pais estavam na igreja. Era domingo à noite. Minha cadela, Sun, estava dormindo no sofá. Nem ela perceberia que eu estava dentro do banheiro, tentando tirar minha própria vida.

— E você sabia onde ficava os remédios? — fala a Dra. Kristal.

— Sim — afirmo. — Eu sempre soube.

Eu sou cega. Não tenho minha visão. Mas sei como usar todos os meus outros quatro sentidos muito bem.

Antes do Ensino Médio, eu nem ligava para isso. Eu estava acostumada a viver daquele jeito. Sem um sentido. Mas... quando mudei de escola... parecia que tudo havia mudado. Eu passei a sentir falta de algo que nunca tive.

Com um longo suspiro, continuei a contar sobre aquela noite, onde eu abri o armário em cima da pia...

— Você não pode mexer nesse armário! — falou minha mãe, uma vez quando eu ainda era criança. Ela estava brava, pois eu abrira o armário pela primeira vez e acabei derrubando um de seus remédios caríssimos. Eu entrara no banheiro apenas para lavar as mãos, já que logo jantaria, e acabei metendo o nariz nas coisas da minha mãe. — Meus remédios! Ah, droga!

Mamãe toma remédios controlados. Ela sofre de ansiedade e vem se medicando desde antes do meu nascimento. Os remédios a ajudavam a afastar a insônia, os ataques de pânico e sua preocupação excessiva com tudo. Quando ela ficava sem tomá-los por bastante tempo, eu e papai percebíamos que ela ficava mais agitada, sempre acabava brigando com alguém e tremia bastante. Os sedativos de tarja preta a deixam mais calma.

Todos falam que foi sorte eu não ter nascido com ansiedade, porém eu acredito que o fato de eu ter nascido sem um dos meus sentidos tem algo a ver com a medicação que ela toma ou com sua ansiedade. Nunca comentei isso com ninguém, pois não quero que ninguém pense que eu a culpe por ter nascido desse jeito. A primeira vez que digo isso em voz alta é para a psicóloga na minha frente.

— Tomar remédios de tarja preta durante a gestação pode sim causar uma doença para a criança — explica a doutora. — Mas não acredito que seja esse o seu caso. Não acho que você tenha ficado deficiente visual por causa disso. Na maioria dos casos, o que acontece é que o bebê pode ficar dependente do remédio, como a mãe.

Suspiro novamente.

— Eu não quero falar disso — falo. — Pensar desse jeito só me faz culpar minha mãe por algo que ela não tem culpa. E eu não quero isso.

Invisível (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora