CINCO

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Gasto toda a minha raiva nos primeiros 30 minutos de treino, imaginando que a bola amarela de vôlei é na verdade a cabeça azul da idiota que feriu a bolha de Fernando. Isso faz com que eu soque a bola com muito mais força do que o natural, o que primeiro deixa minha treinadora empolgada, para então começar a chamar minha atenção e, por fim, nos últimos minutos, me xingar por usar força desnecessária num esquenta de treino, quando ainda nem estamos treinando as posições técnicas nem nada.

— Você vai acabar se machucando! – Melissa berra quando a cortada que eu dou passa zarpando pela orelha de Daniele, a garota que é minha reserva – Ou machucando alguém! A gente não pode ter mais nenhuma baixa! O próximo jogo é contra o Rio de Janeiro! Estão entendendo?! – ela emenda, sempre aos berros e com pontos de exclamação, numa caricatura menos charmosa do Bernadinho.

Ninguém é capaz de esquecer que o próximo jogo é contra o Rio de Janeiro. Até porque o time do Rio de Janeiro é inesquecível – e a última vitória deles em cima de Ponte Belo também. Então todo mundo faz um muxoxo, seguido de uma careta, e treinamos com muito mais afinco. O que me faz bater com mais força ainda na bola.

Eu não sou violenta. Pelo menos é isso que os testes de psicologia disseram, quando passei por uma bateria deles para saber se podia mesmo subir para o time principal. Sou a caçula do time e isso deixa todo mundo muito preocupado comigo. Ou talvez seja porque o time é de Ponte Belo, e por mais que seja um time esquematizado dentro da Universidade, ainda assim há todo o maldito medo de machucar uma Vale. Não que eu seja uma pessoa fácil de machucar, mas ninguém parece estar interessado nesse fato.

Quando o treino finalmente começa – com as disposições táticas e técnicas, rodízio e ensaios de jogada – Fernando já foi para sua terapia, levado por uma estudante de psicologia. Ele me dá seu tchau típico – a disposição dos dedos num código de Star Trek – e parece quase tão normal quanto estava de manhã. Mas meus olhos flagram os dedos dele se mexendo, em ritmo, ao lado do corpo. E isso é o bastante para eu saber que não – ainda não estava tudo bem. E vai demorar a ficar.

E é por isso que volto a bater com toda a força que tenho na bola.

— Dafne! – berra Melissa, quando eu quase a acerto com a bola – Você planeja destruir a quadra?

— Você não vai reclamar quando eu fizer isso contra o Rio – resmungo. E as garotas ao meu lado concordam, sorrindo.

***

No final do treino estou exausta demais, com meus braços pesados, e ainda com muita raiva. O que é uma pena, porque quero continuar batendo, mas não tenho mais força. Isso me faz lembrar que quando a temporada acabar, e eu for me dedicar só a escola e aos campeonatos escolares, eu posso achar um esporte de luta para praticar nas horas vagas. Ninguém quer uma Vale maluca quebrando tudo o que vê pela frente. Embora eu adore a ideia de bancar a louca de vez em quando, para ver se meus pais param de tentar me enlouquecer.

— Soube que o garoto da sua escola vai dar uma festa essa semana – fala Lavínia, quando sai do chuveiro.

Eu estou no banco do vestiário, deitada, suada e muito cansada para me mover, mesmo sabendo que preciso de um banho também. As outras garotas estão conversando assuntos aleatórios, e, de um modo geral, apesar de adorar esse time e os treinos, acabo ficando por fora das conversas. Elas são mais velhas. É estranho porque a vida toda eu conversei com pessoas mais velhas, por causa do meu irmão, e isso nunca me afetou. Mas a cabeça delas é muito diferente. Próximas, provavelmente, do que Vênus era antes de começar a namorar Pedro. O que não é ruim, só que, para alguém que nunca beijou, é para lá de atordoante.

Lavínia é a mais próxima de mim. Talvez porque ela seja só um ano mais velha, talvez porque jogamos juntas no time de base, porque somos ambas nascida, crescida, em Ponte Belo. Ou talvez seja porque ela é mesmo uma pessoa legal. O fato é que, por tudo isso, ela nunca se intimidou por eu ser uma Vale – mesmo ela sendo negra, de periferia, do lado oposto ao lado que vivo e conheço.

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