Comichão

31 5 4
                                    

Comprei uma arma no dia do meu aniversário. Não sei bem porquê, apenas fui até a loja, entrei e pedi uma que fosse confortável para o meu tamanho e qualidades físicas. Quando me perguntaram quantos anos tinha, carreguei a arma e descarreguei no peito do homem. Depois peguei o máximo de munição que pude e voltei para casa com minha arma nova. Fiz questão de deixar o dinheiro no balcão.

Minha irmã gêmea ganhou um pônei. Não um de verdade, mas uma estatueta de madeira. Disseram que era uma relíquia de família. Ela não pareceu muito contente, jogou o presente na parede, quebrando o pescoço do animal. Meu pai colocou-a de castigo enquanto minha mãe recolhia as lascas de madeira do chão. Como sempre, minha irmã não ficou muito em seu quarto. Meus pais nunca conseguiam ficar muito tempo com raiva dela. Era a preferida de todos. Recebia os melhores presentes e sempre possuía as melhores regalias. Primos e tios vinham todos os anos para o nosso aniversário, mas era a ela quem cumprimentavam mais demoradamente. Contavam coisas para ela e pediam conselhos. Minha irmã nunca ligava para eles, fugia deles, xingava-os e mandava-os embora. Mas todos anos eles voltavam, com mais presentes, histórias e pedidos. Neste ano, vieram mais do que o normal. Parentes da Ásia e das Antilhas. Gente com sotaques e roupas engraçadas. Minha irmã ganhou bonecas negras, jogos de marfim, tecidos suaves e joias. Houve até um primo de minha mãe que trouxe um macaco de pelo branco e cinza em uma coleira.

Enquanto eu tinha uma arma. Meu pai me deu dinheiro de presente para que comprasse algo que me alegrasse. Escolhi o revólver.

Eu menti. Disse que não sabia porque havia comprado a arma, mas não é inteiramente verdade, eu tinha uma comichão. Minha avó disse que esses pressentimentos são comuns na família. Às vezes saltam gerações, quase nunca recaíam sobre homens, mas sempre sobre as matriarcas. Era preciso, não é fácil domar o destino sem os genes certos. Por isso essa habilidade se mostra tão valiosa. Não é como nas histórias em que uma pessoa vê o que vai acontecer, ou tem pesadelos após ler algo em varetas, ou búzios. É como uma comichão mesmo. De repente, em nossa nuca, sentimos uma coceira interna, um calor, e precisamos fazer algo a respeito. Na verdade, não é nada disso. A gente apenas faz algo que precisa ser feito, sem que saibamos que precisa ser feito. É como sentir que as palavras certas estão sendo pronunciadas. Tem vezes que sinto que falei besteira, não porque eram palavras tolas, mas sim que eram erradas para aquele momento. Quando isso acontece, sinto que tudo deu errado e que falhei com o destino e que Deus faz cara de desaprovação para mim. Acredito muito nisso.

Minha mãe não acredita quando falo da comichão. Acha que estou inventando para ter atenção. Minha irmã caçoa de mim e diz coisas horrorosas a meu respeito. Todos acreditavam, porque ela era ela, o futuro da família, aquela que saiu da vagina de minha mãe antes de mim.

No aniversário em que comprei o revólver, coloquei a arma na cintura, por baixo da blusa, e passeei pelo salão de festas da mansão. Era divertido sentir a ignorância de todos ao perigo que corriam.  Apanhei-me escolhendo minhas vítimas, pelos mais variados motivos. Em minha mente atirava por não terem falado comigo no último ano, por não terem me levado para esquiar como fizeram com minha irmã, ou por simplesmente estarem tirando meleca do nariz. Ninguém escapava, seja negro, asiático, hindu, velho, novo ou muito velho. Sentei-me à mesa e mirei mentalmente minha mãe, toda brilhante e sorridente em seu vestido prata ao lado de meu pai. Será que não sabia que a culpa daquilo tudo era parte sua?  Por que ria tanto? Poderia matar qualquer um naquele exato momento. Será que sorriria depois disso? Apenas um bastaria. Vizinhos cercariam Danelaas e descobririam a degeneração que se tornou a nossa família. Saberiam dos planos dentro de planos que se perpetuavam, geração após geração, pais com filhos, primos e primas, pela pureza do destino. Herdeiros de nada. Apenas um tiro. Mas quem?

Levantei e fui até a escada. Hora de ir para meu quarto e esquecer tudo aquilo.

Minha irmã vinha descendo. Trazia a esmeralda da família ao pescoço. Minhas avós e tia-avós vinham acompanhando-a. Havia lágrimas em seus olhos. Minha irmã estava belíssima. Magnífica em sua coroação. Cabelos cacheados, vestido rendado e lábios maquiados. Vermelhos. Como sangue.

Saquei a arma e atirei em seu rosto igual ao meu. Depois levantei a arma e atirei contra o meu próprio.

Errei no segundo tiro. Destruí meu nariz e um dos olhos. No caso de minha irmã, vi seu cérebro abrir caminho como uma uva pelo crânio e empastar o papel de parede verde atrás de seu corpo. Minhas tias gritavam e vi pessoas subindo as escadas  para amparar minha irmã.

No chão, senti chutarem meu presente de aniversário para longe e cuspirem maldições em meu rosto enquanto passavam. Lembro de pensar que tudo tinha a ver com tempo. Apenas segundos. Se eu tivesse nascido segundos antes dela, se eu tivesse subido as escadas segundos depois, se eu tivesse caminhado segundos menos e ter virado em uma esquina antes de passar por aquela loja de armas. Mas no fim, nada disso importava. Fosse o tempo que fosse, o destino sempre encontra o seu caminho. Tudo era uma questão de ouvirmos ou não as comichões que ele nos mandava.

Senti que me levantavam e desciam meu corpo pelas escadas. Fiquei sobre o tapete sentindo meu cabelo colar em meu crânio exposto. Havia uma discussão distante, muita gente falando ao mesmo tempo. Apontavam para o relógio da parede com urgência. Um tio puxou uma faca e minha mãe se colocou entre nós. Uma tia desmaiou e vi que mais gente gritava por sangue. Foi uma das tia-avós que desciam com minha irmã que veio até mim. Todos ficaram em silêncio porque em suas mãos estava a esmeralda. Ela se ajoelhou ao meu lado e colocou o colar em meu pescoço, bem na hora que o relógio começava a bater as doze badaladas. Houve um arfar generalizado, mas de certa forma aquilo não era de todo surpreendente, era preciso haver uma matriarca. Minha tia-avó pediu a faca ao meu tio Vanderbilty e olhou para minha mãe e pai, que responderam com um aceno de cabeça. O corte não foi perfeito, não era para ser; foi doloroso, mas não era pra ser diferente, eu merecia. Ao fim das doze batidas, a família  estava apaziguada e os últimos convidados chegaram pelo vitral de Elza.

Levaram-me para o salão de festas, onde me cumprimentavam e me enrolavam em bandagens. Lá recebi os presentes de minha irmã e distribui conselhos como uma matriarca deve fazer. Mesmo que possivelmente eu fosse a última, mas isso era assunto para outro dia, pois aquela data era de festa, como dizia a frase em cima do bolo: Feliz aniversário de 15 anos, Caritas e Alberto!

Rua Dornelas, 45Where stories live. Discover now