Éter

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Ainda dava tempo pra mais uma rodada. Ethel estava atenta ao relógio. Ainda era

cinco e vinte, faltava mais de meia hora para sua próxima aula. Modelos Matemá

ticos Aplicados a Telecomunicação I. Nunca entendeu isso. No primeiro período,
teve Cálculo I, onde viu que não sabia nada certo, que toda curva era uma reta e

vice versa. Três anos depois, vem um professor falar que não era bem assim, deví

amos deixar as curvas como curvas mesmas e as retas o mais retas possível.

Nem sabia se ia ter espírito para ver a aula. Já tinha perdido as aulas da manhã
discutindo com seu namorado, Pedro. Ele estava perplexo. Tinham dado um
tempo a um mês. Foi o suficiente para ela conhecer melhor Pablo, o melhor

amigo de Pedro, e perder a virgindade numa noite regada a vinho. Sentia-se mal
pelo que fez, mas não se arrependia. Queria que Pedro fosse o homem de sua

vida, mas quem a iniciou foi seu melhor amigo. Ex-melhor amigo, ela escutara.

Após a discussão deles, Pedro foi procurá-lo no centro acadêmico e partiu para

cima como um animal. Afastaram seu namorado, que chorava, xingando Pablo.

Ana Luíza perguntou para ela o que houve, se estava bêbada. Ethel ignorou e

continuou tentando rever o que houvera neste dia. Pablo e Pedro eram amigos
desde a alfabetização. Estudaram no mesmo colégio e tudo. Só para piorar,
ambos sairiam no fim do ano engenheiros de telecomunicações. Pablo, na

adolescência um tímido, agora era um dos mais populares da faculdade: grande

amigo do ex-presidente do grêmio estudantil, que agora concorria a deputado

federal, organizador dos maiores churrascos da faculdade, entre outras coisas. Já
Pedro, que durante o segundo grau era conhecido como o ͞músico͟ do colégio,
acabou entrando demais em sua música e virando um rapaz melancólico. Passou para a faculdade após ser expulso de seu grupo de amigos, que o achavam muito
͞ácido͟. Também, destruíra vários dos namoros da turma, seja com comentários
ou com chifradas.

Foi nesta época que Ethel o conheceu. Uma patricinha assumida, ao se encontrar
com alguém que jurava ser um antigo amigo mauricinho, acabou se encantando
por ele. Virou uma punk de boutique por um tempo, até ambos melhor se
conhecerem. Com a formatura perto, tomaram vergonha e pararam de cheirar é
ter e outras besteiras que faziam para tentar ser alguém na vida.

͞Pensando naquele retardado?͟, perguntou Caim, roubando um gole da cerveja
dela e sentando-se na mesa. Ela nem virara para cumprimentá-lo, nem xingá-lo,
como era de costume. Ela lembrou como uma piada ácida de Caim fez pensarem
na vida. ͞Vocês serão o único casal que conheço que namorou sério do começo ao
fim da faculdade!͟, tinha dito. Decidiram dar um tempo. Ele ficou em casa a maior

parte do tempo escrevendo, compondo e estudando, só saindo para porres homé
ricos, acordando em uma praça qualquer de Vila Isabel com menos um
documento na carteira. Ela resolveu curtir mais a vida, sair com o pessoal da
faculdade, ir a boates que nunca tinha ido. A preocupação de Pablo com seu
namorado que os aproximou. E a lembrança da época em que cheirava éter com
ele que a fez perder a virgindade. Não se arrependia, tinha adorado toda e
qualquer posição feita naquela noite. Mas queria que tivesse sido com ele.

Um grito agudo em seu ouvido, seguido de um fedor de cachaça. Era Caim,
tentando tirá-la do transe. Ela falou um pouco com ele, que lembrou que havia
um trabalho para ser entregue ainda naquele dia, uma lista de exercícios. A lista
que ela e Pablo deviam ter feito ao invés de treparem a noite toda. E a manhã
também.
Pensou em responder que ia pegar com Pedro, mas se lembrou que não era o
momento de pedir isso a ele. Não agora. Ele devia estar trancado no centro acadê

mico, alucinado, escutando o vinil original do Pink Floyd, Dark Side of the Moon

que por lá deixaram há décadas. Ela resolveu ir copiar de Pablo. Provavelmente

era exatamente o que ele estava fazendo, na biblioteca.

Deixou o dinheiro com Ana Luíza e se levantou. Caim resolveu ir junto dela. Incrí

vel como todo gordo de óculos de engenharia, ao ficar um pouco próximo de uma

mulher, já virava um grude até conseguir o que queria. Sexo. Sexo. Tenho que ir

falar com Pablo, pensou.

Esperou o sinal fechar. Não tirava a noite com Pablo da cabeça. Não por ter sido a

sua primeira vez. Mas por ter sido maravilhosa. Ficou impressionada como seus

pais, normalmente bem opressores, acabaram a deixando dormir na casa de uma

amiga para fazer o trabalho que ia copiar. Como esta desculpa colou? E porque

logo quando era com outro, não com Pedro?

Correu pela faixa. Não só por pressa, mas para se livrar de Caim. Pelo menos, era

engraçado ver um gordo daqueles bufando para atravessar o sinal. Segurou a

frente de sua mini saia para não levantar. Será que daria tempo de ir para a

escada com Pablo? Sempre ouvira falar daquele lugar entre o nono e o décimo, e

já estava preparada. Por que ela não conseguia tirar isso da cabeça? Pablo. Sexo.

Sexo com Pablo. Sexo com qualquer um que estivesse na escada.

Deve ser o álcool, pensou. Ela tinha muita energia sexual guardada. Só perdera a
virgindade há cinco dias, com 22 anos. E não era feia. Uma loirinha de 1m60,

cabelos lisos até a orelha. Culpa de seus pais. Agora era hora de aproveitar. Se

Pablo não quisesse ir, ia com qualquer outro. Não, Caim, não. Outro que pudesse.

Foda-se Pedro. Aquele babaca fica fazendo doce, sentimentalismo por nada. Ela

queria! E queria naquela hora. Agora ela era do mundo e nada ia a impedir.

Caim a segurou para deixar um carro passar. Logo após, ao darem um passo,

berros. Um corpo caira a quinze centímetros deles. Para ela, parecia que aqueles

segundos demoraram anos. Era Pedro. O cheiro de éter era forte. Seu vestido

ficou um pouco sujo de sangue e neurônios de seu namorado. Por quê? Só por
sexo? Só por uma noite? Será que sua calcinha também se sujara? Caim chutara o

cérebro de Pedro que vazava. ͞Seu filho duma puta, mais um pouco e você me

leva junto pro inferno!͟.

Olhara para cima para ver de onde ele pulara. Viu Pablo, chegando correndo, com

o rosto mais pálido do que já era. Conseguiram se reconhecer. Ela queria, no

fundo, sorrir para ele, mas não era a hora. A ficha caíra só agora. Ela entendera

realmente o que acontecera.

Ethel ficara três anos longe da faculdade. Síndrome de Pânico e psicose maníaca
depressiva bipolar, falou seu psiquiatra. Pablo esteve sempre lá para dar-lhe

apoio. Estão de noivado marcado. Ela voltara para engenharia em outra faculdade

agora, e até consegue entrar na faculdade, mas jamais por aquela entrada. Ela

nunca esqueceu o que Pablo falara que estava escrito numa página de caderno

aberta no centro acadêmico, com a letra de Pedro. Não ser o primeiro, nem ser o

último. Melhor não ser.

Por uma vida menos ordináriaWhere stories live. Discover now