Marinho

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Ele não conseguia ver nada a um palmo do nariz.

Estava imerso em um oceano infinito e sombrio. Seus ouvidos identificavam o som abafado do ondular marinho. Um som fino e melódico chegava até ele, e ele se deixou ninar. Como as crianças ainda no útero o fazem ao ouvir a mãe a cantar. Dentro de si, sentiu um ardor no ventre novamente e aquilo se expandiu diretamente para os membros, logo braços e pernas recebiam uma corrente elétrica que os fazia querer se mexer desesperadamente. Era como ele se sentia quando estava eufórico, só conseguia pensar em correr pra poder expulsar do corpo toda aquela energia.

Ainda flutuando, Andrew começou a mexer seus braços e pernas, nadando para não sabe onde.

Viu surgir aos poucos à sua frente uma luz de fogueira, e atrás dela uma sombra imensa e dançante projetada em um paredão de pedra. Uma espessa camada de água, como uma parede, o separava daquele cenário.

Percebeu que um homem estava a sua frente, dançando. Andrew começou a dançar como ele. As mãos de Akna tocaram seu rosto e ele a viu. Ela estava cantando naquela língua estranha.

– Era isso o que lhe faltava. O mar é o seu lugar.

Sua voz era grave e sedutora. Tão nítida, que a ouviu como se fosse dentro de si mesmo. Logo ela foi se afastando, voltando a fogueira e a água continuou ali, e o homem continuou a dançar em sua frente, e Andrew continuou a imitá-lo e começou a se sentir diferente.

Andrew pôs-se a visitar alguns momentos em sua vida; lembrou da boa infância, e da adolescência agitada, porém divertida. Mas não gostou de lembrar de sua vida agora. Ele via o seu apartamento no principal bairro de Copérnicus, e era um belíssimo apartamento. Mobiliado com o que ele podia pagar de melhor. Tinha uma janela imensa com vista para a rua e um pequeno parque. Trabalharia a vida inteira para pagar o apartamento, mas agia como se estivesse tudo bem. Ninguém nunca imaginaria o financiamento eterno que o prendia.

Seus pais haviam ficado tão felizes de passar o dia de ação de graças lá com ele. Estavam satisfeitos pelo sucesso do filho. Mas logo partiram para ir visitar a irmã de Andrew que morava no continente. Iriam passar o natal com ela e os netos e a família do marido dela. Andrew não quis ir, sentia-se estranho. Não queria ver aquelas pessoas em casa, pois elas iriam falar e fazer a mesma coisa das pessoas do trabalho. Andrew queria ficar em casa onde ele poderia ser ele mesmo, sem ambições ou cobranças de coisas que ele não quer fazer, nem obter... mas quando olhava em sua volta, a sua casa não dizia isso. Sua casa não dizia que ele, era ele mesmo. Ao menos não quem ele realmente desejava ser. Ele era o que se esperava que fosse. E quem pediu isso dele? Quem acabou com seus sonhos?

Ele se lembrava agora, que quando criança sempre visitava o mar, e tudo o que desejava era viver nele e dele. Como invejava Julie e Maik, que seguiam os seus anseios sem se preocupar. Se não fosse pela mãe insistir que ele trabalhasse logo e fosse bem sucedido e... na verdade, a mãe não o exigiu isso. Tentou lembrar algo que ela tenha lhe dito assim, e não achou. Ela nunca falou isso. Mas todos falavam. Sutilmente, distraidamente, às vezes diretamente. Colegas de escola, professores, chefes, parentes. Toda a cidade exigia que Andrew fosse bem sucedido e morasse na Avenida Principal. Foi quando ele percebeu o quão idiota foi. E que, tirando as pessoas mais próximas, ele não se importava com os outros, então, com o que ele estava se preocupando? Nem todos eram como ele. Aqueles lá do escritório, não eram do seu bando... Andrew não foi feito pra viver na mesma sociedade que eles, nada daquilo lhe servia. Era como viver no meio de ovelhas. Pode soar seguro e divertido as vezes, mas elas não sabem fazer nada além de balir.

E então Andrew se sente sozinho. Um lobo em meio as ovelhas, mas isso não o deixa feliz. Ele queria encontrar sua alcateia.

A água batia no seu corpo, e o induzia ao movimento, e ele continuou a sua dança desconexa. Existia ali uma energia que ele nunca percebeu antes, e ele não sentia nem calor nem frio. Parecia que havia uma linha que vinha do céu, diretamente para sua cabeça, passava por todo o seu corpo e o ligava a terra. Andrew fazia parte dela, junto com vários outros seres, e junto com aquelas pessoas da roda, e com Akna.

Eles eram do mesmo tipo de gente, do mesmo povo. Não povo de uma etnia, lugar ou cultura, mas sim vinham da mesma origem, eram filhos da mesma casa.

Andrew e os seus não eram como os outros humanos, eram decididamente diferentes. Na verdade, sentindo bem o corpo agora, Andrew achava que sua aparência não era mais a mesma, seu rosto parecia diferente, suas mãos, suas pernas... Talvez ele tivesse agora uma aparência inumana, mas ali, naquele lugar, não lhe incomodava a ideia.

Sua mente estava pensando muitas coisas e as vezes, parava e apenas prestava atenção às sensações. E agora, sentia-se completamente exausto, não pensava nada.

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Notas:
referência de canções com tambor e voz:

Latente - EstigmaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora