A casa

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Há lugares que são santuários de memórias.

Cada cômodo, cada pequeno objeto e reentrância recheados de momentos especiais de alguém. Um beijo roubado atrás de uma cortina, um pedido de casamento feito em um sofá da sala e até as primeiras noites de um casal. Em algumas dessas casas, foram diversos momentos de gerações de uma mesma família. Noutras foram vários de famílias diferentes. Quando entramos em um lugar desses, podemos sentir a vibração dos tempos passados. Fica impregnado no ar que se respira e na luz refletida das paredes. Os sentimentos permeiam tudo, mesclando-se com lajotas e reboco, exalando perfumes antigos e matizando a luz do ambiente.

A casa observa seus ocupantes, aprendendo a ser e criando sua própria identidade e vida. Não é apenas aquela casa, daquele número, é a casa amarela das buganvílias, ou a casa dos Pereiras, ou até mesmo a casa charmosa e bonita da esquina. Há noites chuvosas, daquelas que se acende lareiras, em que os ocupantes se reúnem para ler para si mesmos em voz alta histórias de amor que quase se pode ouvir o coração bater dentro das paredes.

Há casas que tiveram bons ocupantes, que se amavam e se respeitavam, mas também havia casas como a que ficava na rua Dornelas, 45, que, por uma série de desventuras e infortúnios, nunca teve boa sorte na escolha de seus moradores e não chegou a conhecer coisas boas para se recordar.






Eduardo havia parado ao batente da porta e encarado o capacho por um tempo. Nele não havia o tradicional "Bem Vindo", com cerdas macias para se limpar os pés, mas sim uma chapa de madeira com diversas tampas de garrafa pregadas. Não havia sujeira ou barro nelas, seja quem for que tenha morado ali parecia ter preferido pular o capacho a ter a experiência faquir de limpar os sapatos ali. Ou então já fazia tempo que este capacho tinha visto algum calçado para tê-lo sujado. De qualquer forma, não era uma boa maneira de receber seus novos moradores, pensou.

"Não vamos entrar?", perguntou Denise atrás de Eduardo.

"Claro", respondeu ele pegando-a no colo e atravessando-a pela porta. Não era tão difícil de fazer, apesar da gravidez a garota ainda não tinha pegado corpo. Sempre fora magérrima e o prognóstico era de uma gravidez sem grandes alterações. Um palito com barriga.

Lá dentro, Denise torceu o nariz. O lugar era realmente grande como prometeram, mas ninguém tinha falado das montanhas de pó, dos buracos no assoalho e dos lençóis brancos sobre os móveis velhos. Isso sem falar do cheiro. Parecia que a casa toda era um grande armário velho de alguma tia, esquecido em um sótão e aberto apenas para pegar a toalha do Natal. Havia tanto mofo e umidade ali que era surpreendente que não houvesse uma floresta de cogumelos sobre os móveis.

"Então, o que achou?", quis saber Eduardo com um sorriso acanhado.

"Ótimo", disse ela.

"Sei que não é o que sonhava", desculpou-se ele, "mas foi o lugar que pude arranjar".

"Não disse nada, Eduardo", disse ela puxando o lençol de uma das poltronas e sentando.

"Depois que dermos uma faxina e passarmos umas mãos de tinta, vai ver, vai ficar muito melhor".

"Olha, Eduardo. Se você pensa que vou me desgraçar limpando esse lugar, pode tirar o cavalinho da chuva. Você que quis que a gente casasse. Você quis que tivéssemos este bebê. Eu já tinha tudo resolvido quando você veio me tirar de casa".

"Mas, Denise, é meu filho também. Não podia deixar que tirasse".

"O corpo é meu, caralho. Já parou para pensar nisso? A vida é minha."

Eduardo ficou em silêncio por um tempo vendo a poeira navegar pelos halos de luz dos vidros turvos das janelas.

"Ainda podemos ir para a casa de minha mãe como havia proposto", disse ele por fim.

Rua Dornelas, 45Où les histoires vivent. Découvrez maintenant