1. Hatuey (parte 1)

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Ano 1490 da era do ungido 


O dia amanhecera quente e ensolarado, no entanto a umidade do ar prenunciava tempestades. Saíram quando o sol ainda não tinha surgido no horizonte sobre as montanhas, para verificarem algo que fora encontrado na praia.

Eram dezenas de homens, jovens e adultos e Hatuey caminhava com eles, junto ao pai, entre ansioso e empolgado. Passara precocemente pelos ritos de iniciação e os terminara havia pouco tempo. Esta era primeira vez que ele foi considerado digno de participar de uma empreitada com os guerreiros e caçadores do clã.

No rosto ainda não cicatrizara totalmente a imagem ali tatuada, uma tartaruga, símbolo de sua família e do grupo a que pertencia, ainda sendo tratada com unguentos que a protegiam do sol e funcionava como antibiótico e anti-inflamatório. Era o terceiro mês, do ano de 1490, da era do Ungido. No segundo mês ele havia completado oito anos.

A coisa avistada na praia aparentemente viera trazida pelo mar, empurrada pelas ondas até a areia branca do litoral de Marién, o território onde moravam. Urubus foram vistos no céu rodeando o local, antes que um homem e o filho adolescente, que pescavam por ali, percebessem o corpo. Eles chegaram brancos e trêmulos à aldeia, falando de forma desencontrada.

Conheciam seres como aqueles somente nas lendas contadas pelos que se aventuravam mais adentro ao mar, para além dos arrecifes, em lugares onde a vista não alcançava. Alguns dos mais corajosos pescadores trouxeram, em outros momentos, pedaços de coisas encontradas, elaboradas talvez como os tecidos dos cintos dos homens Taínos, e as saias das mulheres casadas. Mas jamais alguém soube dizer das cores e enfeites e das estranhas inscrições.

Mas o que afinal encontraram na praia, depois de horas de caminhada pelas trilhas em meio à floresta, era diferente de tudo que o menino imaginara e construíra em sua mente durante a noite, enquanto divagou em pensamentos e não conseguiu dormir.

Hatuey hesitou um pouco em se aproximar, mas sabia que não teria como evitar. Então quando todos se aglomeraram em volta da criatura, começaram a observá-la e comentarem assustados sobre ela, ele também o fez.

A criatura tinha o tamanho e a forma de um ser humano, mas era branca, estranhamente branca demais, talvez porque, e tudo indicava isso, morava nas profundezas das águas. No rosto tinha pelos e aquilo chamou a atenção do menino, ele sentiu nojo.

Mas foi quando ele visualizou os olhos arregalados e sem vida, que algo lhe veio como em raios e trovões de tempestade: uma espécie de visão do futuro, imagens cortadas, embaçadas como neblina, rápidas, e ele sentiu o mundo lhe fugir.

Hatuey se apartou um pouco do grupo e vomitou próximo às plantas além da areia, onde a floresta já começava a se impor. Ficou bastante envergonhado e tentou avaliar os pensamentos do pai com relação a isso. Mas este, ainda que o encarando, não demonstrou nada em sua face intacta de emoções. Nenhuma nesga de contrariedade ou preocupação, nenhum gesto de ajuda ou sinal de compadecimento por ele. O menino estava, enquanto em meio ao grupo de homens adultos, por sua própria conta.

— Arranquem as vestes dessa coisa! — ordenou o chefe do grupo de guerreiros — Mas cuidado para não danificar as partes do corpo!

Os homens se apressaram em obedecer e fazer o que o capitão lhes dizia. As respirações se tornaram mais fortes e as batidas agitadas dos corações quase audíveis. O mais apressado dos homens ergueu a veste que cobria a barriga e peito da criatura estirada ao chão com uma das mãos e com a outra enfiou a faca sob o que parecia uma segunda pele sobreposta a do corpo, cortando-a com certa dificuldade.

Um corpo nu, albino e magro, coberto de pelos, surgiu, provocando palavras de espanto e reações de enjoo. Primeiro a proeminente barriga, depois braços e pernas. Era quase possível afirmar que se tratava de um ser humano branco. Mas os pelos no rosto e peito o confundia também com um grande macaco branco.

Outros homens se ajuntaram ao primeiro e logo toda a segunda pele, ou veste, estava aberta. Com as lanças tentaram movimentar o corpo, sem o tocar com as mãos, mas pedaços se soltavam e o odor fétido subia e grudava nos narizes, fazendo-os desistirem e se afastarem um pouco.

Bacanao, pai de Hatuey, se abaixou junto ao corpo. Estava muito intrigado com aquilo que via diante de si e com sua origem ignorada. Seriam os seres, metade homens, metade peixes, que habitavam a perdida Cidade Submersa? Apanhou um pedaço de pau e manuseando-o afastou os dedos do ser. Não havia membranas ali, como se esperava de seres como esse e no pescoço ou outra parte do corpo também não tinha nada parecido com guelras, ele não entendia...

Hatuey voltou novamente para o grupo a tempo de ver com detalhes quando retiraram umas das últimas partes das vestimentas que cobriam as partes íntimas do ser. Um pênis indicava que deveria ser macho.

— Ele é humano, pai? — o menino perguntou.

— Não sabemos dizer, filho. Não sabemos — sua voz indicava desolação.

Os homens observaram minuciosamente a criatura, todas as partes do seu corpo, a vestimenta. Questões foram levantadas, respostas incertas foram dadas, permanecendo em maior número as dúvidas. Decidiram então que o levariam para a aldeia. E lá, após a observação do Bohique da tribo e pela palavra dele, se decidiriam sobre o que fazer com aquele corpo. A única coisa certa é que estava morto e a magreza extrema dava indícios de que passara por algum período de fome, ou doença, antes de morrer.

— Tragam varas, cipós e capim — disse o líder do grupo encerrando a conversa. — Vamos fazer uma maca para colocá-lo e voltar à aldeia.

O tempo estava se fechando no horizonte e a chuva não demoraria a cair quando eles ergueram a maca improvisada com o corpo e seguiram mata adentro, se distanciando do mar. Hatuey não sabia quando teria coragem novamente de nadar em águas como aquelas, coisa que antes era o seu passatempo preferido.

O menino havia sido comunicado, pelo pai, na noite anterior, de que iria com o grupo. Abama, a jovem mãe, com seus vinte e poucos anos, não concordara na hora. Para ela, ele ainda era uma criança, não estava preparado para essas coisas.

— Não temos muita escolha, senhora — disse-lhe o marido. — Foi seu irmão, o grande cacique Guarionex, quem determinou que ele vá junto.

Então ela se aquietou. Sabia que o filho seria opróximo cacique na ordem de sucessão e que estava sendo preparado para isso.Também sabia das profecias do Bohique (1) doclã local, ao qual pertenciam, sobre o menino. E contra as palavras do grandexamã ninguém podia se impor, nem o cacique, sob perigo de morte e maldições.


Nota de rodapé

Bohique - sacerdotes/curandeiros conselheiros dos caciques.


><><

A tartaruga símbolo da família e tatuada no menino. 

 

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Taínos: os herdeiros da invasão - WATTS2019Onde as histórias ganham vida. Descobre agora