1- Hatuey (parte 2)

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Os raios faiscavam nos céus, trovões abalavam a terra e a água caía torrencialmente sobre o grupo quando este chegou, por volta do meio do dia, na aldeia.

Ainda que sob chuva, foram cercados por dezenas de curiosos. Todos queriam ver e saber o que eles tinham encontrado nas areias da praia. A maca foi depositada no chão, sobre o barro e água da chuva. Cada um que observava, sem se aproximar demais por receio, fazia, ao se afastar, um gesto se auto benzendo e então cuspia com nojo.

— Vá para casa, filho — disse Bacanao a Hatuey. — Se seque, coma alguma coisa.

— Tá bom, pai — dizendo isso ele saiu correndo em direção à sua casa. A mãe já o aguardava na porta. Ele fez uma pequena reverência diante dela e em seguida entrou.

— Vá comunicar ao Bohique que trouxemos o ser, Abey — disse o líder dos guerreiros a um dos rapazes que fizera parte da expedição. — Precisamos saber onde colocá-lo.

O rapaz se afastou rapidamente, dirigindo-se a uma das casas que formava a aldeia. Não era muito longe e ele não demorou a voltar:

— Ele disse para aguardarmos neste lugar mesmo. Ele virá até aqui — disse o rapaz. O capitão consentiu com um gesto.

O bohique apareceu na porta de entrada de sua casa. Os homens que o aguardavam se posicionaram com um guarda-chuva incipiente, ou guarda-sol pois o objeto era feito mais para protegê-lo do sol do que necessariamente da chuva, e então o conduziram ao centro do pátio, onde uma multidão o aguardava. Seu rosto estava Pintado de branco, usava um cocar enfeitado com penas vermelhas, tinha no pescoço alguns colares coloridos e outros com pedaços de ossos, nas mãos ele tinha um maracá. O xamã se aproximou sem pressa, cantando quase em transe, em um ritual. As pessoas se afastavam abrindo um espaço para ele passar assim que ele se aproximava.

Finalmente ele parou junto ao morto. Seus olhos ainda permaneceram fechados por instantes. Quando se abriram eles pareceram querer saltar de suas órbitas. O susto do bohique foi claro e nítido como se ele estivesse vendo o pior dos fantasmas. Ele silenciou o canto e paralisou, ficando como uma estátua. A mão com o maracá se imobilizou e o som parou. Ficou por instantes naquela posição e seus olhos iniciaram um movimento frenético. Sua boca produzia sons incompreensíveis, suas pernas desistiram de sustentá-lo e ele desabou no chão molhado. A tintura do rosto e corpo começaram a se desfazer.

Os homens tentaram em vão levantá-lo, mas ele se recusou. Ele tinha as mãos e os joelhos no chão, seus olhos estavam, agora, estatelados.

— O menino! Tragam o menino da profecia! — Ele falou em alto e bom som. As palavras foram ouvidas por todos ali.

O pai sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Hatuey era o menino da profecia. Fora por causa das insistentes visões e sonhos do bohique que Hatuey, o único filho do casal, teve que ser iniciado com idade tão tenra, outros só o seriam depois de terem completado dez anos.

As predições diziam de um futuro sombrio, de doenças, perseguições, traições e mortes. Muitas mortes. Os sonhos e visões prenunciavam que o menino seria grande nesses tempos, que teria a sabedoria, força e resistência para defender os seus, nos tempos do fim. Mas para isso ele precisaria estar preparado, teria que saber das coisas, das organizações, dos lugares, das lideranças, alianças e dos tabus e lendas. Nada poderia lhe passar desapercebido, disso dependeria o futuro não só do clã local, mas de toda a tribo.

O pai saiu para buscar o filho. Não sabia o que o bohique queria com ele, mas estava claro que tudo estava entrelaçado: as visões, as profecias, o filho e o ser encontrado...

A chuva escorria abundante pela cobertura de capim, quando entrou em casa. Encontrou Hatuey sentado no chão com uma vasilha de comida nas mãos. A mãe estava sentada perto dele e o olhava com carinho. A tartaruga Arandu, animal símbolo da família e sempre presente companheira, comia verduras das mãos dele. Dois papagaios, em um pau próximo, comiam e arrazoavam em palavras indefiníveis.

O coração do pai apertava-lhe o peito quando se aproximou da criança. Ele viu de relance os olhos angustiados da esposa, diante da qual abaixou levemente o seu corpo, em uma clara reverência que cabia aos chefes de líderes. Um papagaio voou e pousou no varal da casa. O outro o seguiu. O menino se levantou.

— O Bohique o quer lá — disse Bacanao, por fim.

A esposa encarou o marido, perturbada. Apertava e enrolava nervosamente nas mãos o tecido que usara para enxugar o garoto. Suas vestes, enfeites de pedra dourada no pescoço, braços e orelhas, e toda a organização do cômodo da casa onde se encontravam, insinuava um poderio maior que ela tinha.

— Para quê? – ainda ousou perguntar.

Bacanao fez um gesto silenciando-a, mas ainda assim, submisso. Essas coisas não podiam ser questionadas.

O garoto entregou a vasilha de comida, agora vazia, para a uma mulher que se mantinha em pé ereta, por perto. Limpou as mãos nas coxas. Os pais viram seu rosto se transformar.

— Vou tomar um pouco de água e a gente vai lá, pai — disse transparecendo resignação.

A mãe passou o pano no peito e pernas dele, limpando-o dos últimos resquícios da farinha que acompanhava a carne e que caiu ali, enquanto ele comia. Ela também fez uma pequena reverência para ele. Ela viu que nos últimos meses, desde a primeira visão do bohique com relação a ele, o menino crescera e amadurecera muito.

Para o menino não houve, naquele momento, aparato, pompa ou homens aguardando. Sequer teve algo que impedisse a chuva, que caía de forma torrencial e com estrondos e brilhos que cortavam o céu, de atingi-lo em cheio encharcando-o rapidamente. Para ele não trouxeram guarda-chuva ou guarda-sol. Não houvera tempo.

Ainda assim ele seguiu determinado, mesmo que arrepiado de frio e desconforto, junto ao pai em direção ao bando que se recusava a dissolver e voltar para casa. No entanto o grupo se movia e se curvava diante dele, deixando um caminho aberto em direção ao corpo encontrado e onde estava o Bohique. Ele se aproximou e se curvou diante do xamã.

— Levante-se, filho — disse o chefe religioso. — Virá tempos em que erigirão uma estátua a você e nunca se lembrarão do meu nome. Aproxime-se. Fique junto a mim, fora da chuva.

Hatuey se aproximou. Um clarão intenso, um trovão forte e um arrepio interligou o menino, o xamã, o povo e o corpo encontrado... Yurakán, o espírito da destruição, das tempestades e da morte, dava prenúncios do mal.  


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Taínos: os herdeiros da invasão - WATTS2019Onde as histórias ganham vida. Descobre agora