Dia 6.043

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Fechei o caderno e o abri de novo apenas hoje a tarde.
Eu apenas folheei o caderno.
O medo batia na minha cabeça como alguém toca a campainha e sai correndo. Repetitivamente.

Não li sequer uma palavra, mas as folhas escritas logo acabavam, não eram muitas e não aparentavam terem sido rasgadas.

Aif-um, você é meu irmão. Eu amo você. Ainda amo onde quer que esteja, você é meu herói, meu exemplo. O verdadeiro Aif.
Então por que eu sinto tanto medo de abrir isso?

Acabei não indo pra escola por ir dormir tarde e acordar atrasado. Me sentia embrulhado em papel alumínio.

Encarei o caderno preto novamente, suas letras pratas desgastadas no coro, me chamando como se toda minha vida dependesse daquilo.

Abri.

Antônio, quando ler isso eu provavelmente vou estar viajando.

Era isso que me diziam, quando descobri que você tinha ido pra sempre, chorei muito.

Eu te amo irmão. Você é uma criança melhor do que eu. Você não matou a lagarta quando te expliquei que ela virava borboleta, nem mesmo matou o peixe que pescamos. Você nunca foi desobediente como Ícaro, mas ainda sim ninguém nota você.

Antônio, eu noto.
Eu te noto todos os dias, quando estava na barriga da mamãe, conversava com você. Sempre dividi meus brinquedos, sempre levava você pra apostar corrida de gotas, jogar futebol ou comer balas enquanto te ensinava a pular corda.

Você aprendeu a andar de bicicleta quando eu disse que a luz da terra acabaria se não pedalasse. Você foi um presente pra mim.

Eu te levava comigo sempre, literalmente. E quando não levava, te levava no meu coração.

Ainda hoje, devo levar, Antônio. Se lembra de quando brincamos na árvore perto do muro cinza da escola? Eu, você e o mundo.

Peço desculpas por não te levar comigo dessa vez, mas é o melhor pra você.

Espero que leia,
com amor,
Augusto Ícaro Fernandes.

Fechei o caderno, era o bastante.
Lágrimas caiam constantemente na escrivaninha e com os olhos cheios d'água me levantei e caí na cama.

Augusto, você era, é e sempre vai ser Aif. Então quem sou eu? O que eu procuro?

Eu não parava de chorar então fechei os olhos, quando fechei as lembranças rodavam na mente, a lagarta, o peixe e as bolinhas de gude se misturavam com o gosto de minhas lágrimas.

Minha mãe entrou no quarto.
Ela me viu. Ela não perguntou nada e nem viu caderno algum. Ela apenas se sentou do meu lado,me acudindo mais aquela hora do que eu fiz a vida toda pra ela.

-Vai ficar tudo bem.

-O que é essa dor, mãe?

-Saudades, Fernandes. Apenas saudade.

-Mas eu sinto como se a saudade fosse apenas parte dessa coisa que sinto, o resto ainda não deve ter nome.

-Nomeio a minha de memória.

Minha mãe chorava também, disfarçando silenciosamente, mas chorava.

-Descanse filho.

Ela beijou minha testa como quem disse que estaria sempre ali, mas senti que não foi o suficiente pra repor toda a ausência das outras pessoas.

Plutão, eu preciso de você,
Aif.


AifOnde as histórias ganham vida. Descobre agora