Assinatura Dissonante

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Isaac, o novo irmãozinho de William e Wallace, tinha medo de algumas coisas, afinal ele havia nascido fazia apenas um ano e meio, desde que Ace partira de Rio das Ostras e Will descobriu a fuga de Deandra. Mas, curiosamente, o pequeno Isaac não tinha medo do escuro, pois havia fadas que brilhavam, só para ele, quando as luzes da casa se apagavam à noite. E elas falavam com ele, contavam histórias, ou entoavam canções, e sempre queriam saber dos seus irmãos. Hoje, no entanto, elas queriam que ele fizesse algo. Queriam que ele saísse de seu quarto, e elas o ajudaram a deslizar da cama em que tinha ido dormir no abraço de sua mãe, de tal modo que ela não despertasse. O pai de Isaac estava trabalhando, dando plantão na cozinha de uma pousada.

Brilhando agora com uma luz mais visível e intensa, as criaturinhas de aspecto sobrenatural iluminaram o caminho de Isaac, para que ele cabriolasse engatinhando pelo chão em segurança até o outro quarto, menor, onde dormia William. Ali elas voltaram a incandescer com a luz morna que só os inocentes podiam ver. Menos uma delas, que aumentou seu brilho, chegando a irradiar tal fulgor que quase despertou William.

Quem passasse àquela hora da madrugada em frente a casinha acharia que alguém estava brincando, perigosamente, com fogo lá dentro.

Mas a fonte daquela chama, ela própria um fogo antigo, guinchou em um trinado contido de dor, e fez de si mesma a Linha, um rasgo entre mundos, de onde foi entregue a Isaac uma coisa que não era feita de matéria palpável, mas que ele, inocente das regras da nossa realidade, pegou facilmente, e até mesmo brincou com a coisa mutante. Súbito, no entanto, suas fadas começaram a adejar em torno de suas mãos, e guiaram Isaac até William.

...

Deandra, é claro, sabia desde o princípio que não conseguiria, pois sua inimiga tinha trunfos demais nas mangas, mas ao menos tinha a certeza de que tentou impedir tudo aquilo. Pelo menos enquanto acreditava que evitar os acontecimentos seria o melhor. Mas nem ela, uma Zeladora, podia impedir a História de acontecer!

A gritaria dos invasores tentando alcançar e talvez matar Deandra era intensa, mas não conseguia distrair sua concentração. O suor lhe escorria pelas faces enquanto manipulava o velhíssimo aparelho Predestinador na câmara de conexão da fortaleza em ruínas. Mas, apesar da fúria daquele momento, uma parte dela divagava e lembrava de porquê foi parar ali. A assinatura dissonante daqueles dois, provavelmente, já havia remexido e alimentado de tal jeito a malha de Caos entre todos os Versos daquele Multiverso, que não havia mais volta. Certamente — Deandra pensara antes de saber da incrível verdade — havia sido a dissonante dos garotos que teria colapsado a então misteriosa Ártemis em um ser real.

A realidade, naturalmente, era muito mais assombrosa.

No início a enigmática Ártemis havia sido materializada em uma inimiga astuta e sagaz, que estava sempre um passo à frente dos Zeladores, que, hoje em dia, contando com Deandra, não passavam de uns duzentos e poucos. Duzentos contra uma, e ainda assim a real-neófita Ártemis sozinha havia ludibriado a todos, entrando sem qualquer controle em diversas Linhas, alterando a história de alguns Versos, e, terrível, terrível, até mesmo causando a morte de um homem de um Verso longínquo, Apolônio Q'zendas (um homem real, com nome, uma vida, e sonhos) que a neófita arremessou em uma Linha Morta!

Considerada a pior inimiga enfrentada pelos Zeladores remanescentes nos últimos quinhentos anos, a neófita foi caçada em todos as Linhas Vivas acessíveis, em muitos Versos, até que, há uns dez anos, Deandra, naquele preciso instante um tanto desconfiada da facilidade da captura, encurralou Ártemis na extremidade de uma Linha antiga, na fronteira de um Verso posto em êxtase pelo Sistema, inacessível, irrecuperável. Mas, de algum modo a neófita fez Deandra entrar em Queda, despencando-a, com toda uma nova persona criada em detalhes para aprisionar a Zeladora, em um Verso qualquer, em um mundinho simplório no cantinho de uma galáxia comum, num lugarejo chamado Rio das Ostras. Lá chegando, assim que Deandra abriu os olhos em sua nova vida, Ártemis se projetou para a mente da Zeladora e lhe disse como e quando, provavelmente, conheceria dois meninos, e ao ver os pensamentos de Deandra, sorrateiros, tentando captar a importância deles da mente da inimiga, Ártemis foi dizendo:

O Tesserato - A Linha de Mistério e FogoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora