6. EU TÔ PEDINDO A TUA MÃO E UM POUQUINHO DO BRAÇO

26 6 12
                                    

Ela busca o celular no bolso assim que me vê em sua porta, às dez para as duas da tarde

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Ela busca o celular no bolso assim que me vê em sua porta, às dez para as duas da tarde. Perscruta algo na tela do aparelho e só depois ergue o olhar até mim.

— Eu te falei duas horas? — Assinto com a cabeça. — Foi mal, me confundi, era pra ser duas e meia. Kris tem dentista.

Fica parada, me olhando. Desconfortável, retrocedo o passo e faço menção de ir embora. Pra onde eu não sei, não rola voltar pra casa pra depois voltar aqui. Ela continua me olhando, como se me esperasse dizer tchau.

Por fim, diz:

— Entra aí.

Eu entro.

Na sala, um garoto de uns treze anos me cumprimenta do sofá. Ele é bastante esguio, tem um cabelo cacheado com degradê e um sorriso fácil nos lábios. Decerto é o irmão caçula de Rebeca, embora não compartilhe com ela mais do que o tom de pele negro, tendo as feições mais puxadas para a mãe e mais distantes da irmã.

Rebeca me conduz até o corredor, em seguida a um dos cômodos — o quarto que parece compartilhar com a irmã mais velha, Letícia, tendo em vista as duas camas.

— Senta aí. — Indica uma das camas, cuja parede tem uma bandeira bissexual pendurada.

Ela se senta à escrivaninha no canto do quarto, pega um pratinho de bolachas caseiras e as oferece a mim. Aceito uma por educação, assim como recuso o café, que está na cozinha.

O quarto é relativamente grande, paredes brancas, guarda-roupa de casal com um espelho no meio — por onde me dou conta de minha má postura —, uma estante dividida entre gibis e livros e a escrivaninha em que Rebeca está, cheia de lápis de cor e canetas. Tem também um mural de desenhos atrás dela, desenhos bonitos de pessoas, bichos, casas, castelos, florestas, tudo uma mistura entre o realismo e o lúdico.

— Vou só terminar um negocinho até Kris e Sócrates chegarem, beleza?

Aceno que sim, emudecida. Volto a olhar seus desenhos, a fim de não pensar no assunto começado com P e na sua irmã ontem na rua da minha vó. A maioria dos desenhos é pintada a tinta, alguns a lápis e outros são impressões de desenhos digitais. São cuidadosos, delicados. É impressionante a capacidade de alguém criar algo com tamanha sensibilidade e ainda assim ser uma pessoa insuportável.

Repentinamente, Rebeca se vira para mim, hesitante. Nunca vi seu olhar tão inseguro, penso até que, pela sincronia com meus pensamentos, ela consegue ler mentes e ficou ofendida com o "insuportável". Peço desculpas mentalmente, mas seu olhar permanece em mim.

Então eu a encaro, como quem pergunta, educadamente, qual o problema? Parece hesitar, esta criatura tão dotada de confiança. Até estranho, mantendo fixo nela o meu olhar indagador.

— Eu tava pensando... — ela começa, dispersa. — A professora corrigiu na hora a minha atividade... — Eu sei, eu vi. — Acertei tudo...

Um grande feito, porque fui eu quem ensinou e ainda errei uma.

Aceno com a cabeça e sorrio, querendo só ficar quieta na minha. Ela então continua:

— Cê explica bem... — Olha a folha na mesa. — Será que cê não me dava umas aulas, não? Esse ano tem o Enem e tal...

Não sei o que dizer, por isso mantenho meu silêncio.

— A gente combina um valor, os dias, umas duas aulas por semana...

Fico meio assim, meio insegura, meio receosa em aceitar. Não sei o suficiente para aulas pagas. Sem contar que tendo uma mãe com Licenciatura em Matemática, eu, com certeza, não sou a pessoa mais apropriada para ensiná-la.

Ela continua me olhando, os olhos pretos me engolindo. Preciso dar uma resposta.

— Eu... eu... posso estudar com você — murmuro. — M-m-mas... sem ser pago...

— Não, mano. Uma coisa é cê me ajudar com aquele trabalhinho, outra coisa é cê me ensinar Matemática do zero. Tipo, tudo, tudo, tudo, tá ligado?

— E-e-eu estudo com você... — tento mediar. — É bom pra revisar conteúdo.

Ela meneia a cabeça.

— A gente pode fazer uma troca, então. Sabe desenhar? — Nego com a cabeça. — Posso te ensinar, que tal?

Ela indica o mural de desenhos lindíssimos dela. Observo agora a complexidade de cada linha traçada, me atentando a sua técnica e me canso, me impaciento. Meu desagrado com o acordo deve estar transparecendo no meu rosto, porque ela se justifica, meio insegura:

— Eu não sou profissional, mas...

— T-t-tá... bonito... — a interrompo, podando-lhe a ideia errada acerca de seus dotes artísticos. — Mas eu não levo jeito com isso...

É claro que eu gostaria de desenhar como ela, mas sei que é um talento em constante evolução porque lembro que seus desenhos não eram tão elaborados assim no sexto ano, e só de pensar na trabalheira que foi alcançar esse nível já me é cansativo.

— De boa. Ninguém nasce sabendo, eu também não levo jeito com Matemática, cê sabe.

Digo um "tá" meio abafado. Não quero acordo, não quero dar aula. Quero terminar esse trabalho e ver Rebeca só de longe, em sua carteira no fundo da sala, como era antes disso tudo. E se ela, por acaso, for capaz de ler mentes, saiba que não é nada pessoal.

Ela sorri para mim. Que estranha, tá estranhíssima! Até o momento, não se referiu a mim pela alcunha pejorativa que ela mesma cunhou — tampouco verbalizou meu prenome, mas isto já era de se esperar, dentro do mínimo de normalidade possível.

Se vira para o papel e volta ao risca-risca, a mão deslizando com tamanha naturalidade, que temo que seja para isso que as mãos tenham sido feitas.

Não consigo me distrair, a cabeça cheia de pensamentos ansiosos. Foco no rádio-relógio em cima do criado-mudo entre as camas, a hora demorando eternidades para mudar.

— Pode ligar o rádio, se quiser. É da minha irmã, mas ela deixa. — Olho com vergonha para Rebeca. — Liga aí pra nós, é o primeiro botãozinho de cima!

Cedo ao seu olhar e ligo, sendo que só me interesso pela metade relógio do aparelho.

Está tocando um sertanejo genérico, como é de se esperar da principal rádio arabelense. Rebeca franze a testa, me instrui a como mudar de estação. A outra toca MPB vencido e rock nacional ultrapassado. Gosto, e Rebeca também aprova.

Minha cabeça ansiosa, lógico, vê músicas como medida de tempo. Uma música dura em média três minutos e meio. Tocou duas músicas e meia, ou seja, quase oito minutos e meio.

Ouço a campainha, amém, minhas preces agnósticas foram ouvidas. O irmão caçula de Rebeca é quem atende a porta, ouço-o de longe cumprimentando Kris e Sócrates, depois os passos, ora comedidos ora firmes, atravessam o corredor, chegando até a porta do quarto.

Dão umas batidinhas à porta, Rebeca grita para entrarem. Entram. Enfim, podemos começar o trabalho.

💛

Operação Lobo-GuaráOnde histórias criam vida. Descubra agora