From Dust to Dust

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O ENIGMÁTICO SORRISO e a excitação pueril que reluziam nas orbes castanhas suscitou uma veia de curiosidade no meio-demônio — a felicidade transbordava em uma fonte finita através da compleição singela

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O ENIGMÁTICO SORRISO e a excitação pueril que reluziam nas orbes castanhas suscitou uma veia de curiosidade no meio-demônio — a felicidade transbordava em uma fonte finita através da compleição singela. Contemplá-la florescer na sua exígua redoma e se enternecer com cada coisa que lhe ocorria, compartilhando suas simbólicas experiências com ele, produziu no meio-demônio um sentimento recíproco de confiança. Começou com atividades dentro do âmbito doméstico, a dileção nos trabalhos manuais e a troca de assuntos triviais para se distrair e, no curso de minutos que se dedicou a mostrar a Dante um folheto, dissecou em seu comportamento e na linguagem corporal uma euforia distinta.
Revisou o anúncio com a urgência de uma nova garçonete e uma breve descrição da função na qual se encargaria e reconheceu o nome da lanchonete, rindo da coincidente ideia dela ser alguém que poderia atendê-lo em uma de suas perambulações no caso de ser contratada. Dante frequentava o Restaurant Fredi pela manhã em sua rotina diária pra desfrutar do sundae de morango e ocasionalmente encontrava com alguém que pudesse oferecer um serviço — através de Lady.
Depois de ler, avaliar a reação da mulher e o par de patins visível pela sacola que ela carregava, concluiu que obtivera êxito na entrevista. O que lhe impressionava dessa astuta empreitada independente era sua discrição, não esperava que fosse tão sigilosa e ele sequer soube que ela tinha se candidatado para o posto, mantendo a informação pra si até a resolução.
— Ei, Dante, arrumei um trabalho. — exalou com fervor borbulhante.
— Fico feliz por você. — parabenizou com um sorriso. — Parece que terei o prazer de ter você me atendendo pelas manhãs em alguns dias.
— Se for um bom cliente, talvez. — tirou o par de patins da sacola com uma expressão de consternação. — Mas terei que usar isso para otimizar a performance.
— Não sabe? — arqueou uma das sobrancelhas, curioso.
— Não. Não sei andar nisso, nem bicicleta, nem dirigir — enumerou todas as habilidades aparentemente comuns para pessoas da idade dela que não possuía pratica em nenhum nível funcional. — Mas... Eu disse que poderia aprender até amanhã, só que não faço nem ideia de como.
— Se andar de patins é um requisito, como conseguiu ser contratada?
— Sou muito convincente — respondeu com tom atrevido, pousando as mãos na cintura. — E eu disse que se não conseguisse, você poderia falir e ficaríamos sem casa.
Dante compreendeu que a jovem usou a desculpa como um recurso para comover o velho dono da lanchonete, se munindo do estratagema mais apelativo que alguém seria capaz, mas a casualidade ao verbalizar seu arranjo arrancou uma gargalhada alta do meio-demônio.
— Não é de todo mentira — argumentou, se apressando para vasculhar algumas pastas em uma das gavetas. Agrupando, sobre a escrivaninha, uma pilha de conta que ela arquivou em um minucioso conjunto por ordem de data e prioridades para que Dante revisasse. Ele não via a necessidade de uma varredura no que conscientemente conhecia o conteúdo: as dívidas acumuladas que pagava aos poucos. — Morrison disse que se não pagar certinho podemos ficar sem luz e água. Então só disse o que poderia eventualmente acontecer e o Fredi aceitou. Acho que isso é o que chamam de boa negociação, não é?
Reprimiu o riso. Acreditava no potencial dela nesse quesito, contudo, totalmente ignorante a tal encanto, Diva abarcava uma extraordinária e inata capacidade de criar um vínculo de confiança com qualquer um — fazendo instintivamente com que até os mais precatados e pragmáticos se desarmassem. A princípio, nem ele fora imune a sua aura vibrante e, consequentemente, gravitasse ao redor dela. E após meses de convivência e vê-la em contraste com outras pessoas, desenvolveu uma visão mais analítica a respeito dela e suas singularidades.
Diva é uma anomalia ambulante. Não uma espécime desafortunada no qual se habituara a coabitar semelhante aos desajustados que se uniam a ele, era alguém decente e verdadeiramente gentil. Para o ramo que atuava, ser durão deve ser a norma e ela representava uma oposição a regra, embora lutasse e tivesse um treino eficiente.
— Aqui tem outro nome — se levantou indo para a mesa de bilhar, pegando um taco para se ocupar com o jogo. — Lábia, doçura. É isso.
— É algo ruim?
— Depende de como vai usar.
Ela mordiscou a ponta da unha do polegar.
— Algo te preocupa? — recalibrou o ângulo para fazer uma tacada. — Claro, além do seu problema com os patins.
— Sobre o circo... O que aconteceu exatamente? — aquela, segundo os cálculos, tinha sido a terceira vez nos últimos dias que a questão surgiu. Dante não se aprofundou em explicar todos os detalhes do ocorrido por não ter razões para tal, ainda assim, o assunto sempre retornava. — Eu sei que você falou disso antes, mas é difícil assimilar que foi só isso.
— O que mais precisa saber?
— Aquelas crianças... — ela mirou os patins com apreensão, a voz quebrantando conforme as palavras escorriam pelos lábios ressequidos. — Hipno transformou algumas delas em experimentos...
Dante deixou o jogo de lado e involuntariamente acolheu-a em seus braços, reflexivo. As mãozinhas trêmulas se atracaram no tecido da camisa justa preta que usava ao retribuir o gesto, fortificando mais o sentimento de consolo.
— Elas estão bem, eu te garanto.
— Graças a você — enterrou o rosto no peito dele.
— E a você, não tire todo seu crédito, princesa.
Ela riu.
— Não me chame assim, é embaraçoso.
— Eu acho até mais divertido. — replicou com uma risada mordaz recebendo um olhar severo da jovem.
Dante notou as nuances na atitude quando interatuavam, na maneira que o encarava, na receptividade e na falta de formalidades. Ela parecia apreciar como a dinâmica evoluiu e como a relação se estreitou em um curto período. O silêncio perdurou por alguns minutos, enquanto a estranheza se substituía com uma atmosfera mais suave.
— Eu... Queria te pedir um outro favor, se não for incômodo.
— Eu posso cobrar por esse — respondeu espirituoso.
— Fico te devendo uma pizza... Sem azeitonas — Diva se afastou ligeiramente. — Pode ser?
— Aproveite que estou me sentindo bastante generoso.
Diva calçou um dos patins, caminhando tortamente.
— Me ajuda com isso?
Encaixar o patins nos pés e divagar sobre deslizar pelo assoalho com a destreza motora de um profissional seria a parte fácil; estava bastante entusiasmada com as primeiras lições antes dos erros e quedas desastrosas. O difícil da jornada vinha com os exercícios de equilíbrio, que exigiam não somente que resistisse de pé como, também, não perder a estabilidade para que tivesse domínio sobre as rodas.
Os patins quad que recebeu possuía uma tonalidade branca com couro reforçado e um modelo que acomodava bem os pés, as rodas, um par na frente e um atrás, não estavam muito gastas tampouco apresentavam algum defeito que gerasse algum inconveniente, o que a fez ponderar no deficiente progresso que fazia ao ficar em repouso. Caso saísse da zona segura, uma posição ereta no qual conseguiu se firmar com muitos mais esforço, iria escorregar e cair novamente. Passar o tempo ocioso ganhando machucados não soava como a melhor programação, porém, apesar da vergonha, se sentia bastante animada com a perspectiva de ter a companhia do meio-demônio nas horas subsequentes.
Segurou as mãos de Dante, escutando atentamente as instruções repassadas, tentando permanecer esperançosa de seu êxito. Ela flexiono os joelhos na volta inicial e lentamente aprendeu a se endireitar sem pender para algum lado. O caçador a apoiava durante o percurso; nos testes, em que ele precisou guiá-la com a mão em suas costas, quaisquer movimentos e até meros obstáculos como um pedaço de embalagem que se embrenhou nas rodas a levavam ao chão, prontamente amparada pelo filho de Sparda. Agora só precisava se orientar com a mão dele ao se deslocar.
Todo o discurso de tentativa e erro mais soavam como uma conspiração para continuar até se aborrecer e cansar. Diva não desistiu mesmo quando seus músculos protestarem pelas pancadas e a exaustão pelo treino contínuo.
Sem perder o ritmo, aos poucos, pôde se impulsionar sem a intervenção do meio-demônio que se afastava a medida que aperfeiçoava a técnica e o constância, distribuindo bem o peso de uma perna e a outra e sem oscilações. Depois do que pareceu horas intermináveis, Diva finalmente alcançou um nível de competência nos patins, sendo apta para servir mesas e preparar a comida sem causas desastres.
— E aí, alguma notícia da Trish? — indagou dando uma volta ao redor do sofá.
— Não. Ela costuma ter um período fora do radar quando está ocupada com algum assunto — Dante pegou alguns dardos. — Não me diga que sente falta dela?
Diva riu.
— Um pouco. Ela tem sido um grande apoio desde que cheguei aqui, gostaria de ter mais contato com ela. — admitiu, girando ao circular a escrivaninha. — Talvez eu esteja sendo um pouco ansiosa, mas... As vezes penso que se ficasse muito longe, ou desviasse o olhar, mesmo que por poucos instante, vocês sumiram. Não quero perdê-los...
— Não se preocupe, mesmo que ela esteja em problemas, Trish é durona. Sabe bem onde se enfia.
— Eu sei... — forçou um sorriso. — É bobagem, não é? Esse medo e tudo mais.
— Não, no seu lugar qualquer um se sentiria assim.
— Sabe... Tem uma pessoa... A única pessoa que ainda poderia contatar que conhecia minha família — Diva pausou, se empurrando para perto da mesa de bilhar. — É o Alistair. Ele foi um dos meus mentores. Não como Alexander que me criou e me ensinou tudo que sei... Alistair é o que sobrou da minha vida passada.
Dante atirou um dardo, apurando a audição para ouvi-la.
— Foi ele que me preparou para cumprir minha vocação de sacerdotisa.
— E que idade tinha quando isso aconteceu?
— Doze.
— É um pouco jovem, não?
— Talvez. — disse evasiva.
Ela raramente se permitia abrir mais sobre esse tópico.
Diva parou sua deambulação. Os pensamentos vagando nas margens do abismo das memórias da sua juventude, de sua vida como sacerdotisa. Durante anos as pessoas só a enxergavam como um tipo de ídolo para ser adorada sob o pretexto de abençoá-los e a utópica ideia de prosperidade, mas, no fundo, uma parcela deles temia sua existência.
A cidade no qual Alexander a criou, um lugar pequeno que facilmente se confundiria com algum vilarejo em meio as montanhas, fora fundada pelos seus antepassados e graças a primeira geração se difundiu a crença que os Lockhard tinham a benevolência de alguma nobre entidade — o que não é uma merda lenda — e essa ideia se perpetuou para as seguintes. Os mais velhos conservavam o respeito dos antigos e os mais jovens e menos adeptos não tinham a mesma mentalidade e isso separava, de forma sutil, as duas ópticas.
Ao completar doze anos, Alistair sugeriu que usasse seus dons para beneficiar a cidade — um ato que instituiu o conceito de santa.
Chacoalhou a cabeça para afugentar algumas lembranças, retomando seu treino com os patins.
— Talvez precise visitá-lo em algum momento.
— Colocar o papo em dia? — Dante gracejou.
O meio-demônio lançou outro dardo.
— É. Preciso ver alguns conhecidos.
Restavam mais dois dardos e com uma pontuação invejável, Dante girou o artefato entre os dedos. Ele sempre teve uma excelente pontaria, atingindo nos melhores números do alvo, seja em jogos que se centravam nessa habilidade ou em outros departamentos. Atirou o penúltimo próximo da mosca e sinalizou sua melhor marca. No último, no entanto, Diva acabou se aproximando dispersa, imersa em seus pensamentos, e, sem que pudesse registrar, ela pegou-o no ar com um reflexo desumano e entregou para o meio-demônio que finalizou com um acerto bem no centro.
— Se você estiver disposta, irei também.
— Adoraria, mas, por hora, prefiro não ficar mexendo no passado. Não quero atrair possíveis inimigos para Alistair, quanto menos pessoas envolvidas no meu caos, melhor. — em um passo em falso, Diva escorregou caindo sobre os joelhos. — Ainda preciso de muita prática.
Ela ergueu ligeiramente a cabeça para encarar a mão estendida.
— Temos bastante tempo, doçura.


Se vislumbrar com o uniforme deu a ela a percepção de realidade que carecia e também a autoconsciência de que havia uma falta bastante óbvia de tecido — seja por uma escolha estética ou um apelo físico, ainda tinha que se aclimatar a nova imagem ...

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Se vislumbrar com o uniforme deu a ela a percepção de realidade que carecia e também a autoconsciência de que havia uma falta bastante óbvia de tecido — seja por uma escolha estética ou um apelo físico, ainda tinha que se aclimatar a nova imagem em seu expediente.
O estabelecimento parecia uma lanchonete convencional na qual majoritariamente composta por uma variada clientela de jovens da sua faixa etária, em seu cardápio incluíam desde de refeições elaboradas e bebidas a sobremesas infantis — uma delas sendo o que Dante consumia.
Cindy explicou que o caçador iria geralmente para degustar sundae de morango e que itinerário habitual só se resumia aquilo, o que fez Diva imaginar o que teria nesse doce para que Dante gostasse tanto e se fazia parte de suas excentricidades. Perguntaria pra ele quando tivesse oportunidade.
— Falando no diabo — Cindy brincou, apontando para a exuberante figura familiar se encaminhar até o balcão. — Acho que é sua chance de atendê-lo, boa sorte!
Diva arquejou ao ser empurrada em direção ao meio-demônio.
— Ora, que bons ventos te trouxeram aqui. — brincou com o irresistível e charmoso sorriso de sempre ao pará-la.
Ela congelou por um segundo sentindo o calor de embaraço subir pro pescoço e rosto. Suas bochechas ardiam enquanto, instintivamente, usava um dos braços para disfarçar algumas áreas muito visíveis do corpo que se destacavam, sobretudo o generoso decote e a altura da saia. Queria evitar pensar que estava com menos roupa diante dele que o usual, fingir normalidade e interpretar a epítome da confiança, porém tropeçou na próprias palavras antes de se recompor.
— Sundae de morango, certo?
— É o seu primeiro dia e já sabe o que vou pedir? — provocou convencido. — Está aprendendo rápido, doçura.
Diva balançou a cabeça, reprimindo a risada.
— Cindy me falou. — esclareceu. — Afinal você é um cliente assíduo e bem conhecido.
— Eu gosto do sundae daqui. O que posso dizer? — deu de ombros.
— Espere que eu vou... — o som do sininho lhe chamou atenção. O grupo de quatro jovens entrou no local engatando uma animada e jovial conversa, mas Diva não se moveu... Na verdade, mesmo que quisesse, não podia. A sensação de flutuar no vazio mesmo ciente que os pés se suplantavam ao chão lhe desestabilizou momentaneamente, os pensamentos vieram em uma tsunami que a asfixiou e o tumulto de emoções estavam prestes a se dissolver em lágrimas.
Ela encarou uma das garotas e os traços familiares; cabelos castanhos cacheados tremeluziam sob as luzes da lanchonete e os olhos expressivos que repousaram em uma das mesas vagas. E, sentindo mais e mais a mente se dividir do corpo, começou a observar com mais persistência a garota e assistiu nela o que teria vivido.
Nenhuma das pessoas presentes, distraídas, se deram conta do que ocorria... Diva observou, como uma espectadora, a jovem gargalhar com suas amigas por um comentário bobo partilhado.
Se recompondo, obrigando-se a mascarar a perplexidade, deslizou até às quatro para recepcioná-las.
— E pensar que essa é nossa última viagem antes de voltarmos pra faculdade — uma delas se espreguiçou. — E vai passar na casa dos seus pais, Anne?
— É minha última parada. — respondeu brincando com um sachê de ketchup. — Aproveitar a comida caseira e passar um tempo com meus pais.
— Bom dia, desejam alguma coisa? — deu seu melhor sorriso com um bloco de notas e uma caneta em mãos.
A garota de cabelos castanhos a fitou e Diva retesou.
De todas as tramas do destino, nunca considerou que essa pudesse acontecer. Seria mera coincidência ou estavam fadada ao infortúnio?
Tudo que sua determinação vacilante conciliou era: a primeira vez, desde que se recordava, que se encontrou com sua irmã biológica pessoalmente.

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