Capítulo 6

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Ele estava ao canto, na cozinha, encostado na bancada a ver qualquer coisa no telemóvel.
Todo ele um deus grego mas que, neste momento, mais me parece um peixe num rio sujo. Pelo menos é o que a minha razão diz ao coração.
Eu e o Vicente não falámos mais desde ontem e apenas o ouvi chegar duas horas depois de ter saído. Não sei onde foi. Não quero saber.
-Bom dia.-Pigarreio, um pouco constrangida. Não tinha pensado nestes momentos quando aceitei que ele viesse para aqui morar. É tudo tão familiar e estranho ao mesmo tempo.
O Vicente desencosta-se do balcão e arruma o telemóvel no bolso das calças, visivelmente atrapalhado.
-Bom dia...eu..-Ele olha para mim e os seus lábios erguem-se um pouco. Algo nas minhas veias aquece, mesmo contra a minha vontade. Mesmo que o odeie. Áquele maldito sorriso meio torto.-Queres café? Ía tirar agora para mim, se quiseres.
-Claro.
Sento-me numa cadeira na ilha da cozinha e fico de frente para ele, enquanto me passa uma pequena chávena de café. O seu polegar roça no meu por um milésimo de segundo e ficamos ambos hirtos. Como se aquele pequeno gesto fosse algo devasso. Algo que, simplesmente, era proibido.
-Fiz torradas também, mas deixei a manteiga que sobra para ti.Sei que não vives sem ela.-Ele tem razão. Desde que me lembro que como as minhas torradas com montes de manteiga. Ele costumava acompanhar-me nos pequenos almoços de domingo, enquanto os meus pais iam à missa e, depois, entre risos, beijos e dança ao som da rádio, metemos a mesa onde almoçaríamos todos juntos. A minha família e a avó dele.-Sobre ontem...Eu não sabia mesmo que vivias aqui.
-Se soubesses não terias aceitado?
Ele fica a olhar para mim durante alguns momentos e volta a encostar-se à bancada.
-Eu escolhi ficar na mesma depois de te ver. Tu nunca foste o problema.
Somos interrompidos pelo meu telemóvel a tocar e vejo que é a Eva a dizer que hoje há greve dos metros e que hoje já não haverá mais viagens.
Merda.
-Posso dar-te boleia na mota. Eu já ía nela de qualquer forma.
O meu coração acelera e o pânico assola-me. Nem me tinha apercebido que tinha lido a mensagem em voz alta.
Desde o acidente que não toco numa mota e arrepio-me cada vez que vejo ou ouço uma. Recorda-me do João e daquele dia fatídico e, ao mesmo tempo, recorda-me de todos os momentos felizes e sorrisos que ele deu em cima da sua "preciosa" como ele lhe chamava.
-Eu não...-Quase que lhe conto.Quase.-Eu não tenho aulas hoje.
-Não? A uma quarta-feira?-Claro que ele sabe que estou a mentir, mas não insiste. Os seus olhos abrem-se e demonstram que percebe o que se passa. Claro que sabe. A minha alma gémea.-Podemos chamar um Uber. Eu vou contigo. Não me apetece ir a apanhar vento de qualquer forma.
-Eu não sei se é boa ideia...
-Claro que é. Veste-te e depois vamos, estou aqui à tua espera.
Toda a viagem até à universidade é feita em silêncio. Nem um olhar trocado. Tão distante e frio. Ele já não te ama. Diz o meu coração aos pulos. Tu também não. Tu odeia-lo.
Acho que repeti isto para mim umas cinquentas vezes naquele carro, mas não é fácil quando o seu aroma a lavanda me invade as narinas. Sempre o mesmo, desde criança. O meu cheiro preferido. Antigo cheiro preferido.
Ao chegarmos separamo-nos e cada um vai à sua vida.
Outra vez.

                                                                          *

-Veste-te. -Olho para o Vicente que me mira do alto para o sofá, onde estou estendida a ver Friends.-Se quiseres, claro.
-Onde é suposto irmos?
-Por aí.

-Vem Leonor, não sejas medricas, anda mais depressa.. O vento está a bater-me na cara e a mota do Vicente está cada vez a ir mais depressa, mas isso só acontece porque eu quero. Há algumas semanas que ele me ensinou e, sinceramente? Não quero outra coisa.
A adrenalina, o rugido feroz da mota e vontade de querer ir a todo o lado desde que o cabelo esvoasse de baixo do capacete.
Paramos na Ribeira e está a acontecer uma exibição da marinha, com mergulhadores a saltarem dos helicópteros que nos fazem a todos ficar pasmados.
Caminhamos à beira do rio e sinto a mão do Vicente a pousar na minha e não a recuo.
Tenho 16 anos e andar de mota sem carta é, para mim, mais fácil do que estar em contacto com a pele do Vicente.
Já trocámos alguns beijos, inofensivos alguns deles, outros demasiado prolongados que me deram volta à barriga.
-Preciso de falar contigo.- O Vicente olha para mim muito sério e não sei bem o que ele quer. Não esperava uma conversa séria hoje. Não depois do que partilhámos naquele passeio de mota.
-Claro. Vais ensinar-me a andar de carro ilegalmente, também?
Ele ri-se e eu perco-me naquele sorriso. No sorriso que já há 9 anos me dá a volta à cabeça.
-Isso pode ser mais tarde. Mas sou eu quem te vai ensinar, ok? Não deixes que seja o João que ele é um perigo na estrada.-Por esta altura o Vicente e o meu irmão já tinham 18 anos, mas nada na nossa amizade mudou depois desse marco importante. Somos sempre os mesmos..-Eu queria dizer-te uma coisa, só isso.
O meu estômago dá uma cambalhota e não sei o que hei de esperar. Será que quer acabar o que quer que tenhamos? Eu sei que não somos namorados, nunca fizémos sexo, mas será que ele já não me quer?
-Bem, eu... Nós já somos crescidinhos para pararmos de andar aqui às voltas. Eu gosto de ti desde que tinha 9 anos e isso não mudou desde então.-Estou atordoada. Apesar de sabermos que sentimos algo um pelo outro, nunca o abordámos.- Eu quero puder beijar-te e tocar-te e dizer ao mundo que és minha, porque sempre o foste, Leonor.
Desde que entrou na puberdade que o Vicente é adorado pelas raparigas. Lembro-me de um dia o ter ouvido dizer ao João que tinha dormido com uma colega de turma no 10º ano, mas que não tinha sentido nada afetivo. Nos anos que se seguiram fomos sempre só nós.
Eu com medo de não lhe dar o suficiente e ele com uma paciência inimaginável comigo.
-O que queres dizer?
-Não me faças perguntar, Leonor. Vou parecer que tenho 13 anos.
Rimo-nos os dois e preciso de guardar este momento com carinho. Percebo que quer oficializar a nossa relação e eu, apesar de não saber se estou à altura das raparigas da idade dele, sei o que quero. Quero-o a ele.
-Eu quero mesmo que perguntes! Vá lá!
Não deixo que momentos destes, em que nos podemos rir às gargalhadas anos mais tarde, passem ao lado.
-Foda-se.-O Vicente passa a mão na cabeleira farta e desgrenhada e olha muito sério para mim.-Leonor, eu adoro-te e quero ser o teu melhor amigo para a vida toda. Passar os meus dias contigo e jogar às casinhas se quiseres. Ter filhos um dia e viver-mos. Juntos. Por isso, e só vou perguntar porque me estás a obrigar e eu faço tudo por ti. Dás-me a honra de seres minha namorada, para sempre?
Abraço-o e não respondo. Os meus olhos dizem tudo. Somos a âncora um do outro e o nosso amor é inabalável.

A sério que ele me trouxe para aqui?
Foi aqui que oficializamos a nossa relação.
-O que estamos a fazer aqui?
O Vicente está a contemplar o rio Douro e eu a contemplá-lo. Fazemos muito isto, ou fazíamos. Olhávamos um para o outro subtilmente sem que o outro soubesse. Ou pelo menos pensávamos que o outro não sabia.
-Apeteceu-me vir aqui. Pensei que seria um bom sítio para falarmos.
Sentamo-nos num banco e ficamos durante longos minutos a olhar para o vazio. Se calhar já não sabemos estar juntos. Se calhar já não queremos.
-Queres falar sobre o quê? Não há nada para falar. Pelo menos, não tenho nada para te dizer.
O seu olhar recai no meu e sinto um nó na garganta. Aqueles olhos terão sempre um pedaço meu, isso é certo.
-Leonor, não sejas assim. Sabes perfeitamente que temos de falar.
-Podíamos ter falado no dia em que saí do hospital.-Faço uma pausa dramática. A raiva está a crescer lentamente.-Oh, espera! Não estavas lá! Abandonaste-me quando eu ainda estava numa cama de hospital.
-Leonor, não digas isso. Eu liguei mais do que uma vez à tua mãe para saber de ti. Durante dias a fio, sempre preocupado.
Não sabia disso.
-Não muda nada, Vicente. Não estavas lá e já estou farta desta conversa e ainda mal começou.
-Algum dia me vais deixar explicar-me?
-Quando souberes tu próprio a resposta a isso.
Eu conheço-o como a palma da minha mão. O Vicente parece perdido nos seus pensamentos e eu, simplesmente sei-o. Ele ainda não sabe ao certo o porquê de me ter deixado. Pior, acho que ele sabe mas não quer admitir.

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