Capítulo 1

16 2 4
                                    

Uma mulher está à minha direita a navegar por uma aplicação de encontros. Se calhar também devia entrar numa para descobrir o "grande amor".
Não tenho nada contra elas, apenas acho que não são para mim, até porque já desisti do amor a esta altura.
Sim, eu sei que apenas tenho 21 anos, mas já tive um amor épico e um amor falhado. Ambos me destruíram.
O metro está a abarrotar a esta hora da manhã e, se quero chegar a tempo às aulas, vou ter de correr um bocadinho. Claro que as minhas botas com salto não são o melhor calçado para esse efeito, mas vão ter de servir.
A minha universidade fica a mais ao menos 20 minutos do apartamento que arrendei com a minha amiga Eva e o namorado, António, mas demora sempre mais por causa dos atrasos dos transportes e , porque, me atraso muitas vezes no banho de manhã.
Por esta altura, o frio de fevereiro só me traz a memória do que era a minha vida há anos atrás, quando tinha imensos amigos e andava sempre a sair. Neste momento os meus percursos são casa-escola e escola-casa todos os dias. Gosto imenso do meu cantinho e ainda mais da companhia, mas o facto de já não sentir pingo de emoção na minha vida não ajuda o meu sentido de humor.
-Menina, está a tapar-me a saída.
Nem me tinha apercebido de que, para além de obviamente estar à frente da porta, também estou na paragem em que devia sair. Honestamente, o meu curso é um dos poucos aspectos da minha vida onde ainda sinto emoção e curiosidade. Estudo psicologia e o mero pensamento de que, um dia, vou poder ajudar as pessoas, tal como já fui ajudada, enche-me de alegria e motivação.
Já passaram três anos desde a morte do meu irmão e cada dia é uma aventura nova. Ora um dia é triste e nostálgico, ora outro é alegre e cheio de vida. A fase da negação já passou e penso que estou a começar a seguir a minha vida aos poucos.
Quando entro na sala já um leque de gente está sentada, mas o professor ainda não chegou. Retiro tudo da mala, incluindo a minha agenda que está sempre comigo, e preparo-me para duas horas de seca. Sim, eu sei que acho o meu curso interessante, mas certas aulas? São das piores secas que existem.
O tempo demora a passar e só me consigo lembrar do café quentinho que, por esta altura, a Eva já deve ter à minha espera. Às terças-feiras, apenas tenho uma aula e a Eva só tem aulas à tarde, então acabamos por tomar o pequeno almoço juntas. É o nosso pequeno momento onde, depois de três anos, nos aprendemos a conhecer a sério.
-Sabes de um quarto para alugar?- O Bernardo, um rapaz muito baixo e sardento, senta-se ao meu lado como se fosse frequente falarmos, o que não é. Falei com ele no máximo duas vezes por causa dos apontamentos.
-Na verdade, tenho um quarto para alugar no meu apartamento. Somos duas raparigas e um rapaz.- O Bernardo olhou muito sério para mim e depois virou a cara para a frente.
-Na verdade queria só rapazes. A minha mãe tem medo que me destaraia com o sexo feminino.
Não consegui controlar uma gargalhada. Não porque não ache o rapaz capaz de ter alguém, mas o seu embaraço a falar nas mulheres é adorável.
-Como queiras. Se souber de alguma coisa digo, não te preocupes.
O professor Queiroz está a começar a primeira aula do semestre de Neuropsicologia clínica e só dou conta de que terminou quando ouço a algazarra dos estudantes a sair da sala.
Na universidade em si não tenho muitos amigos.
A Eva veio de Moçambique há quatro anos e há três que divido o apartamento com ela. No primeiro ano fomos só a duas e outras duas raparigas que saíram entretanto. Quando o António apareceu no laboratório da universidade e os seus olhares se encontraram houve "faíscas e tudo", segundo o que ela me contou.
Eu entendo já tive essas faíscas, no que parece uma vida passada. Com Vicente, o meu primeiro e provavelmente o meu único amor verdadeiro.
-Cheguei!
A minha melhor amiga já está na sala com duas canecas de café e torradas acabadas de fazer em cima da mesa. Ela, como sempre, está linda mesmo apenas indo ficar em casa. O seu cabelo sempre muito bem arranjado cai-lhe nos ombros nuns caracóis perfeitos.
-Leonor, nem uma chamada a dizer que estão interessados no quarto. Nem uma!-Sento-me ao seu lado, enquanto ela mexe no seu portátil.- Olha só as fotos que meti na net, a esta hora já devia ter algum telefonema.
-Tem calma. Meteste o anúncio anteontem, ainda não passou muito tempo.-Dou um gole num dos melhores cafés da minha vida.-E para além do mais estamos em fevereiro, não há assim muita gente a entrar no segundo semestre.
Ela fecha o portátil e faz-me um sorriso ligeiro.
-Eu sei disso, mas as contas estão a ficar apertadas.
-Sim, a Rafaela já devia ter dito que ia embora há mais tempo. Mas vai correr tudo bem.
Ela faz um ar de derrota e percebo que está bastante triste, mas apenas por causa do quarto?
-Eu já te tinha dito que eu e o António estávamos a planear uma viagem a Itália, certo?-Aceno afirmativamente. Já ouvi falar desta viagem centenas de vezes.-Mas com o dinheiro extra que temos de pagar de renda não sei se vamos conseguir.
Compreendo-a perfeitamente. Itália sempre foi o sonho dela e, secretamente, o meu. Eu e o Vicente passámos semanas a falar desta grande viagem que íamos fazer os dois até que tudo aconteceu. Espero conseguir lá ir um dia, realizar o nosso sonho, mesmo que seja sozinha.
-Eu ponho folhetos na universidade e no café. Vai tudo correr bem amiga.-Abracei-a e a tensão desapareceu.
Passei o resto da manhã a organizar o quarto, enquanto a Eva me falava de todas as roupas que queria levar e que cidades visitar. O António chegou e saíram para ir ao cinema.
Não posso dizer que a convivência aqui em casa com um casal seja difícil, mas é certamente desafiante. Eles querem sempre que eu vá com eles sair, mas de vez em quando sou obrigada a dar desculpas, não quero ser uma lapa.
Depois de ver o "Rapaz do pijama às riscas",o filme mais deprimente que já vi-sim, sou sensível e não costumo ver filmes de chorar- resolvi ir a um dos sítios da cidade que mais me trás calma.  A biblioteca Municipal.
É um lugar onde normalmente reina o silêncio e onde me consigo concentrar a estudar ou ler.
Se me perguntassem qual é a coisa que mais gosto de fazer, a resposta seria ler romances.
Porquê? Porque os romances dos livros são os únicos romances reais.
A minha mãe não teve sorte no amor, já que o marido lhe morreu apenas três anos depois de se casarem. Onde andava o lindo amor nessa altura? E nem vale a pena dizer que não era amor verdadeiro, porque toda a gente que os conheceu enquanto casal os descreve como almas gémeas, feitos um para o outro.
E eu? Fui abandonada por um rapaz que amava profundamente e traída aos vinte por um de quem nem gostava tanto assim.
O amor lixou-me. A mim e a todos à minha volta, a não ser a Eva, claro. Ela e o António são a clara exceção.
Quando me sento no sofá confortável ao fundo da biblioteca a ler o mais recente livro da Alice Kellen, entrei no meu mundo. Nada me pode tirar de lá.
A não ser claro o rapaz de 1,80 que está a ler numa mesa ao longe. O seu cabelo castanho e meio despenteado não enganam. Mesmo passados três anos, ele continua o mesmo.Calças pretas e uma camisola de carapuço branca, que foram os meus pais que lhe deram. Tenho a certeza de que se ele olhasse para mim iria conseguir ver, mesmo a esta distância, os seus olhos azuis penetrantes e os seus dois brincos na orelha direita.
Não sei o que ele está aqui a fazer.
Mas é ele.
O meu Vicente.

Nós, de sempreOnde as histórias ganham vida. Descobre agora