Capítulo 4

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Não consigo perceber onde começa o meu espaço pessoal e o dele.Juntamo-nos tanto que quase somos um, como se o exterior não existisse.
Ele abraça-me, num abraço tão forte que parece que quer recuperar três anos de distância.
Sabe tão bem. É como regressar a casa depois de uma pequena estadia fora. Porque ele sempre foi a minha casa. O meu porto seguro.
Ficamos assim não sei quanto tempo ao certo, mas largamo-nos e vejo as lágrimas a quererem sair dos olhos. Na minha face corre uma lágrima solitária Uma lágrima pelo que me foi tirado e agora, sem saber porquê, me está a ser devolvido.
-Meninos? Já se conhecem?
A voz do António tira-nos do transe em que estávamos e afastamo-nos lentamente, sempre a olharmo-nos nos olhos.
-Mais ao menos.-Consigo pigarrear.
O Vicente finalmente larga a minha mão e olha-me de cima a baixo, regressando novamente aos meus olhos. Aquele olhar azul perturba-me de uma forma indescritível.
-Nós somos velhos conhecidos.-Ele levanta um dos cantos da boca e apercebo-me de que já não me lembrava ao certo de como era a sua voz. Estava tudo a desvanecer com a saudade.
Eu sento-me no sofá a tentar acalmar as emoções e o Vicente não tira os olhos de mim. Os seus olhares prolongados que tiram qualquer um do mundo onde vivem para se juntar a ele, no seu próprio mundo.
A Eva passa uma mão no meu ombro e deposita um beijo na minha cabeça.
-Vamos deixar-vos a sós. Parecem ter muito que falar.-Ela pega na mão do namorado e seguem juntos em direção à porta.-Vamos ao café lá baixo, se precisares liga logo.
Aceno com a cabeça e saem.
De repente somos só nós os dois.Duas antigas metades, que agora nem um todo parecem.
Ficamos a olhar uns minutos um para o outro. Simplesmente a verificar que ainda somos nós. Que as marcas que deixá-mos um no outro não se apagaram.
-Leonor, eu não sabia que vivias aqui.-Ele senta-se ao meu lado no sofá a uns centímetros de distância. O seu aroma a lavanda, tão típico, entra-me pelas narinas e quer ficar ali para sempre.-Se quiseres posso ir embora...
-Tu deixaste-me.
Ele olha para mim e eu para ele, durante longos segundos, até que foco o olhar no outro lado da sala.
-Foi complicado para mim também... Eu não sabia o que fazer.
-E abandonares-me naquele preciso momento pareceu-te a coisa certa, Vicente? O meu irmão tinha acabado de morrer ao meu lado, caraças.-Novamente sinto a minha face molhada. Não consigo conter as poucas lágrimas que caem.
Ele olha para mim e eleva a mão até à minha face, mas detém-se a meio caminho. Não tenho certeza se queria que ele me tocasse. Seria como dantes, tenho a certeza. Ele ía-me dizer que não faz mal chorar e ia beijar cada lágrima que derrama-se, como se fossemos uma só pessoa com a mesma dor. Pelo menos era assim antes.
Ficamos a olhar para o vazio durante vários minutos. Os minutos mais longos da minha vida.
-Quando saí fui terminar a licenciatura em Coimbra. Encontrei um pequeno T0 e arrendei-o. Com a morte da minha avó já não tinha família e a casa dela já tinha sido posta à venda. Foi o melhor que me ocorreu. Tinha de sair daqui.
Olho para ele, simplesmente.
-Não contava ver-te aqui. Muito menos nesta altura do ano.
Ela olha para mim e sorri. Um sorriso triste, tal como os seus olhos.
-Precisava de voltar para casa. Não tinha ninguém em Coimbra e foi difícil arranjar amigos.Acho que quando se perde uma parte de nós é difícil tentar encaixar novas partes.
Compreendo o que ele diz. Tenho a Eva e o António, mais ninguém. Foi complicado quando tive de voltar a conviver com pessoas, quando tive de voltar a viver.
-Então és feliz?
Ele pensa durante um segundo.
-Sim.
Um pouco do meu coração parte-se. Parece mesmo que consigo ouvir.
-Fico feliz por ti. A sério que fico.
-Não mintas. Consigo ver que querias que estivesse miserável.-Um canto da sua boca ergue-se e percebo a tentativa de piada. Ele está nervoso e desconfortável.-E tu? Estás feliz?
-Não.- Fui curta e direta. Com um passado como o nosso não há lugar para mentiras. Conseguimos detetá-las todas.
-Ainda queres ser psicóloga?
-É esse o plano...
-Foste a uma? Depois do...
-Depois do acidente? Podes dizer em voz alta.-Juntos as pernas ao peito e olho para ele.-Fui. Ela ajudou-me a perceber que eu não podia ter evitado nada. Foi o que a vida quis.
-Falaste de mim?
O meu olhar descai para os seus lábios. Carnudos e simétricos. Lábios perfeitos.
-Claro que sim. Afinal, foste a grande causa para deixar de acreditar no amor.
-Não podes estar a falar a sério.
Não sei porquê mas a raiva começa a inundar-me ao ouvir estas palavras.
-Sim, claro que estou a falar a sério, Vicente. Estávamos juntos e quando mais precisei de ti desapareceste. Puff. Sem sinal teu. Odiei-te e ainda odeio. Não adianta estar aqui com conversa da treta. Podes ficar, mas não me dirijas a palavra até estar pronta.
Levanto-me e ele segue-me, no entanto pára a meio da sala. Ele sabe que se estou incomodada não pode falar comigo, que não respondo por mim.
Deito-me na cama e penso em tudo. Em todo o caminho que levei para neste momento odiar a pessoa que mais amei. Apercebi-me apenas hoje que o odeio. Não é irónico?
As lágrimas caem sem cessar e não sei como é que ainda não desidratei depois de chorar tanto num só dia.
Ouço alguém bater à porta e o coração escapa uma batida.
-Querida, sou eu. Posso entrar?
Limpo as lágrimas o mais que consigo e recomponho-me.
-Entra.
A Eva senta-se ao meu lado e deito a cabeça no seu braço. Ficamos ali muito tempo e sei que ela tem perguntas. Ela é a minha melhor amiga mas nunca lhe falei do Vicente. Se falasse tudo se tornaria real e o que eu mais queria era esquecer.
-Queres falar sobre o assunto?
Aceno negativamente com a cabeça.
-Ainda não estou preparada, mas quando estiver falamos, pode ser?
Ela dá-me um beijo na cabeça e o António entra com uma bandeja com comida. No meio disto tudo nem jantei.
-O Vicente saiu. Disse que precisava de espairecer.
-Leonor, se não quiseres ele não fica. Pode ir encontrar outro sítio.
-Não é preciso. Já falámos e já esclarecemos como vão ser as coisas. Ele pode ficar.
Eles os dois abraçam-me e deixo-me chorar mais um pouco, à espera que tudo fique como antes.
O pior é que a partir de agora tudo vai mudar.

Nós, de sempreWo Geschichten leben. Entdecke jetzt