Capítulo I

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Para Enoch.

Meu filho, se você enfim está lendo estas palavras eu já me faço muito distante, quem sabe até mais do que você gostaria que eu estivesse. Agora aquilo que vinha a nos afastar torna-se pequeno, vai além das nossas incontáveis diferenças e das intermináveis milhas que nos separam. Eu posso imaginar o quanto tudo isso soa confuso, mas acredite eu estou realmente me esforçando ao máximo, a fim de dar ao menos um pouco de sentido às minhas palavras, para que elas lhe proporcionem algum desfecho. Sei o quão numerosas  devem ser suas perguntas, muito já ocorreu, provavelmente mais do que seja possível elucidar, mas mesmo que eu não possua todas as respostas, espero que meus poucos esclarecimentos consigam de certo modo desanuviar a tempestuosidade de suas incertezas, uma vez que meu abraço encontra-se gélido de mais para lhe afastar delas.

Enoch, eu me recordo da última vez que estivemos realmente juntos e não somente em um mesmo recinto, era um dia dos pais, toda família estava reunida à mesa, pensar que já faz tanto tempo. Nem mesmo minha intransigência seria capaz de represar o vazio deixado por essas memórias. Me desculpe, perdão meu filho, o tempo se encarregou de me tornar o tipo de homem que enxerga no sentimentalismo um tropeço, porém, agora muito pouco me resta além daquilo que tange o sentimental. Desde que me entendo por gente, sou um caçador e nada além disso Enoch, no entanto no instante em que escrevo esta última carta me vejo empenhado a caçar palavras apenas para você. Meu filho você não faz ideia o quanto eu me arrependo de não ter sido o pai que você merecia ter ao seu lado. Observo solitário a taciturnidade que permeia os cômodos deste lugar que outrora você chamou lar. Sinto tanto sua falta. Meu maior remorso é não ter admitido isso enquanto havia tempo, enquanto ainda poderia haver um "nós".

Só Deus sabe o quão numerosos são os questionamentos que enegrecem minha mente, tal qual a pólvora que besunta minha barba após um disparo. Eu me pergunto, francamente, valeu a pena esbravejar todos os meus fardos egoístas durante aquele jantar? É uma pergunta retórica, cujo a resposta eu sempre soube, ela era tão evidente quanto as galhadas que ainda adornam as velhas lâmpadas da sala de estar, sua mãe sempre detestou aquele lustre. A questão é, eu não deveria desrespeitar suas escolhas apenas por não terem sido as mesmas que eu fiz, do contrário as distâncias entre o Rancho Kane onde me enraizei e a cidade para onde você voou, seriam menores, e suas fotos nos álbuns muito mais numerosas.  

Meu filho, eu não possuo preferências neste momento em que já não mais posso tê-las, todavia que essa correspondência final não seja somente um amontoado de desculpas póstumas vindas de seu ríspido pai, mas sim uma última história a ser contada, como a última que eu costumava lhe contar depois de tantas outras, consumidas pelo calor bruxuleante de uma singela fogueira. Sob o constelado céu que outrora partilhamos eu lhe contei sobre estrelas distantes, porém, hoje talvez sejam elas que tenham algo a contar sobre nós.

O sol entrava em declive, vagarosamente alinhando-se aos distantes contornos do esmaecido horizonte. Os poucos feixes de luz capazes de transpor a cinzenta uniformidade do céu não produziam sombra alguma, apenas uma luminescência morna e pouco perceptível em meio ao sopro insistente das brisas crepusculares. Silenciosamente eu me esgueirava por entre os troncos caliginosos das imponentes faias, pisando com cautela sob as folhagens que guarneciam o úmido solo outonal. Conforme eu persistia em continuar seguindo os vestígios deixados por minha presa indiscreta, observava o hálito de minha silente respiração condensar-se brevemente em uma ínfima névoa. A temperatura caía drasticamente, e a tenacidade de minhas mãos rigorosas aos poucos cedia à inevitabilidade dos tremores e formigamentos, decorrentes do frio e da exaustão. Durante intermináveis horas permaneci com paciência no encalço de minha presa, no entanto àquela altura o cansaço já tinha tomado proporções estafantes e levado consigo minha rarefeita resignação. Meu dorso inveterado arqueava-se com o fardo de minha laboriosa e infrutífera caçada, tenso, sustentava o já desconfortável peso de meu velho rifle. Com certo esforço eu ainda o mantinha firmemente alinhado na direção de um alvo que não estava lá, ainda.

Depois de certa idade os anos passaram a se acumular como cera em meus ouvidos, obstruindo meus outrora hábeis sentidos, no entanto, de súbito algo ocorre. Consigo distinguir com certa dificuldade um sonido, um compassado ruído, um breve trepidar estrépito. Eram cascos. Obstinado, avanço tal qual um fantasma por entre os grises meandros daquele ermo bosque. Enfim, ao longe vislumbro através da pardacenta névoa espectral a opaca silhueta de um jovem cervo. Instintivamente aponto o cano de minha velha espingarda, apoio-me no tronco derribado de uma áspera árvore, pressiono um de meus olhos, ajusto minuciosamente minha posição, acalmo o eufórico flexionar de meus pulmões, prendendo minha respiração. Puxo o gatilho. O calor incandescente da pólvora sibila no ar, aquecendo-o com seu aroma fumegante. O estampido do disparo irrompe a quietude sepulcral que solenemente se mantinha instaurada naquelas cercanias silvestres. O frígido uivar do vento cessou dando lugar ao grasnar agourento dos corvos que lá permaneciam com sua negra plumagem, tais aves pareciam velar o pobre cervo, como se pertencessem ao coro de um fúnebre cortejo. O projétil acobreado atinge o frágil corpo do animal, que em seu último suspiro urra um pungente bramido. Toda aquela lancinante cacofonia cala-se uma vez mais, e a única coisa que sou capaz de discernir em meio às tétricas raízes é a silhueta inerte de minha presa. No entanto, havia algo mais.

A CartaWhere stories live. Discover now