CAPÍTULO 08

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Segunda-feira.
14° graus Celsius.
❄️❄️❄️


   Rhaví foi embora na manhã seguinte, depois que eu praticamente o obriguei a ficar e pelo menos tomar café da manhã comigo. Ele prometeu que faria o possível para voltar o quanto antes, além de que ia conversar com Joe e os outros sobre mim, explicar como eu descobri sobre eles e como gostaria de conhecê-los.

   Confesso que me senti um pouco solitário depois que ele saiu, sem ninguém para conversar, só o mais palpável silêncio que praticamente se materializava no ar, me deixando um pouco angustiado, de certa forma.

   Resolvi não ficar pensando muito nisso e fazer alguma coisa de útil no meu tempo livre. Depois de conectar o YouTube da TV com o do celular, coloquei minha playlist favorita no volume máximo e comecei a limpar o andar de baixo, enquanto chegava a hora de fazer o almoço (resolvi fazer uma refeição saudável pela primeira vez em séculos, com comida de verdade, e não coisas prontas e instantâneas que só precisam ser esquentadas...).

    Uso um pano úmido para tirar a poeira das mesinhas da sala com os vasos da minha mãe, tomando cuidado para não reduzi-los à cacos no processo, o que provavelmente faria ela arrancar meu fígado e usá-lo como decoração no lugar deles. O refrão de "good 4 u" ecoa pela sala e me faz começar a cantar junto com a Olívia, sem pre preocupar em estar desafinado ou não.

   Os minutos se passam sem que eu sequer perceba enquanto limpo o máximo que consigo cada canto da casa. Algum tempo depois, começo a preparar o almoço, mesmo que minha mente insista em sempre retornar para o mesmo ponto: Jack/Rhaví.

   Tento tirar esse lance maluco de lobisomens super gatos que aparecem do nada peladões na minha porta e me concentrar em preparar o arroz do jeito certo, já que fazer isso não é o meu forte nem quando estou totalmente empenhado nisso, quanto mais quando estou com a mente divagando em outros pensamentos. (P.s. os pensamentos: um garoto lindo e pelado na minha casa). 

   Minha  mãe costuma provocar e dizer que meu arroz está mais pra um mingau, mas eu não sou tão ruim assim (isso quando tem não tem açúcar no lugar do sal ou quando não deixo queimar). Reviro os olhos ao lembrar de suas provocações e começo a separar os ingredientes, colocando-os sobre o balcão da cozinha enquanto ouço "happier than ever" ecoar pela casa, me fazendo sofrer junto com a Billie dessa vez, mesmo sem nenhuma desilusão amorosa para entrar no clima da letra.

❄️❄️❄️

    Os poucos raios de sol deixam a floresta com um ar meio sombrio, não que eu me importe com isso. Lufadas de ar quente saem pela minha boca enquanto pedalo o mais rápido que consigo pela sinuosa estrada de terra que leva até a Cidade. O casaco grosso barra boa parte do vento gélido, mas meu rosto não tem tanta sorte, já que meus lábios estão super ressecados.

   De vez em quando olho inutilmente para os lados para ver se vejo algum movimento entre as árvores sinuosas, mas tudo que avisto são alguns coelhos e esquilos. Não há sequer vestígio dos lobos.

   Eu deveria ficar feliz, certo? Isso quer dizer que agora todos já são humanos novamente, para dar continuidade nas suas vidas e não se preocuparem mais com o fato de poderem se transformar em lobos... Pelo menos até o próximo inverno.

   Sou tirado dos meus pensamentos quando um som mecanizado corta os reconfortantes sons da floresta, o farfalhar dos galhos, a melodia dos pássaros e o chiar dos roedores.

   Franzo as sobrancelhas e diminuo a velocidade ao avistar um velho quadriciclo parado uns cinquenta metros a frente. Há uma caixa amarrada na traseira dele com várias quinquilharias.

   Olho para os lados rapidamente, encontrando um homem saindo de uns arbustos com duas lebres em uma das mãos e uma espingarda na outra. Ele assobia baixinho enquanto caminha até o quadriciclo.

    — Bom dia. — O senhor diz assim que chego a uns dez metros de distância. Ele aparenta ter uns 50 anos, é meio barrigudo e tem uma careca nada discreta, apesar do Buzz.

   — Bom dia.— respondo, apoiando os pés no chão para descansar por um instante. Lanço um olhar rápido para as lebres penduradas de ponta cabeça. Gotas gordas de sangue escorrem por suas orelhas cinza e pingam na grama.

    — Você é o filho dos Miller's, certo?

    — Sim.— observo a caixa amarrada na traseira do quadriciclo, onda há várias correntes, armadilhas de urso e outras coisas que não sei indentificar.

   — Você sempre faz caminho de bicicleta, garoto?? Cuidado, ainda estamos na temporada dos lobos.

   — Eu vivi toda minha vida com aqueles lobos no meu quintal. Eles são mais mansos que qualquer animal que possa pensar.

   — E eu vivi em Indiana por mais de vinte anos. As pessoas de lá tinham uma visão parecida com essa em relação à James warren, e veja no que deu: 918 mortos. — Rebate ele, analisando-me com seus olhos leitosos de um azul meio apagado. Reviro os olhos e começo a pedalar pela estrada. Meus lobos nunca fariam mal a ninguém.
  
  

❄️❄️❄️

    Apesar do número de habitantes e da localidade não muito favorável da nossa pequena e esquecida cidade, a escola pública é enorme e possui dezenas de salas, embora a maioria delas fique trancada e sem uso o ano todo devido a falta de estudantes.

   Acorrento a minha bicicleta ao mesmo poste de sempre, um quarteirão antes da escola. Posso ver a praça daqui, há alguns velhinhos sentados nos bancos de madeira, conversando alegremente enquanto jogam baralho e um punhado de migalhas para os esquilos, que correm pela grama até eles com curiosidade.

   Enfio as mãos nos bolsos da calça e começo a caminhar pela calçada vazia, sentindo o habitual cheiro de poluição que paira no ar, mesmo que o número de carros aqui seja quase nulo se comparado com qualquer outra cidade do condado de Quebec. Tento vasculhar a memória para lembrar se fiz todas as atividades que foram passadas na última semana, mas se não me engano, eu fiz tudo certinho.

    Avisto Cristian apoiado contra uma das colunas do Hall da escola, com um dos pés em cima de seu skate e com os olhos grudados no celular. Seu cabelo escuro e desgrenhado está meio bagunçado como sempre; os dedos estão cheios de curativos por causa das horas a fio que ele passa tocando guitarra, e mesmo que esteja a alguns metros de distância, já posso ver o cordão com uma palheta presa nele em seu pescoço, um presente que lhe dei quando tínhamos uns treze anos.

    — Hey.— Murmuro ao me aproximar.

    — Você está atrasado.— Ele mente, com um sorriso de lado. Reviro os olhos e lhe dou um soquinho no ombro, dando-lhe uma leve empurrada em direção as portas duplas da escola, para onde começamos a andar.

    — E o que você tá fazendo aqui fora então?

   — Esperando meu amigo, não é óbvio? E roubando o Wi-fi de alguma casa por aí, já que eles não nos dão o da escola...

   — Você é impossível, Cristian. — Corto-o, tirando meu próprio celular de dentro do bolso.

   — O quê?! Como eles esperam que a gente sobreviva sem internet a tarde toda?!

   — Eles esperam que você passe a tarde estudando, na verdade...

   — Mesmo assim! Que tipo de adolescente em pleno século XXI vive sem Wi-fi?! Se eu desmaiar do nada dentro daquela sala e não acordar mais, você já sabe quem processar, entendido? — Reviro os olhos novamente. Onde foi mesmo que eu encontrei esse maluco mesmo??



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QUANDO O INVERNO ACABAR Where stories live. Discover now