Introdução

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Em algum lugar do Essos, onde a vista do homem comum não alcança, trabalhava com discrição e constância a servidora de R'hllor. Nos últimos dois séculos, tinha guardado consigo, mediante o uso de uma oração que lhes foi concedida pelo sacerdote vermelho, os restos mortais do príncipe Aemond Targaryen.

Ao contemplá-los sobre uma mesa, ela, no entanto, hesitava. O mundo estava caótico e fora de ordem, e os Targaryen precisavam ser salvos. Trazer do mundo dos mortos uma alma que, muito provavelmente, já teria renascido em outra matéria e dela deixado, era um risco raras vezes tentado por outros servidos daquela deidade. Usualmente, se ressuscitava os que teriam morrido recentemente, não em grande espaço de tempo.

Constance hesitou. A sacerdotisa não era inexperiente ao ser a pescadora dos perdidos do outro lado, resgatando-o da escuridão confortante da morte e trazendo-os à luz da vida. Todavia, uma diferença vital fazia aquele momento deveras peculiar para se ignorar: quase duzentos anos separavam a última vida de Aemond Targaryen da atual situação que se encontrava Daenerys Targaryen.

E o Deus a havia mostrado o que esperava a última de sua linhagem, que tinha sido forjada pelo sangue e fogo de R'hllor no auge de Valyria. Era preciso que ela fosse salva de seus próprios pretensos aliados, do contrário não era somente a dinastia que cairia no esquecimento, tornando-se mais um nome em velhos livros, esquecidos pelos meistres e longe do acesso do populacho. Mas o mundo que todos conheciam cairia em eterna escuridão.

Para salvar a última da dinastia de dragões, para que esta fosse preservada e sua continuidade mantida, Constance faria o que fosse preciso. Teria sucesso onde nem mesmo Melisandre sonharia em se arriscar.

"Certo", disse ela, mais confiante. "Faremos isso."

Organizando os restos mortais do finado príncipe sobre a mesa, ela já deixou separada uma leva de novas roupas e também um tapa olho, incerta quanto ao feitiço conseguir até mesmo reparar a velha ferida que tinha retirado um olho do rapaz. Em seguida, Constance, levemente inquieta, se certificou de que aonde estava não sofreria nenhum tipo de perturbação.

"Muito bem, está na hora de começarmos."

Semi-cerrando os olhos, Constance se empertigou e, pousando as mãos centímetros acima da ossada de Aemond Targaryen, começou a murmurar com confiança e em voz alta o feitiço necessário para que aquela situação se realizasse. Ao contrário das outras ressuscitações, Constance aplicou palavras antigas. Havia uma lenda em Essos de que Targaryens tinham não somente em seu sangue e sua carne, mas em seus ossos componentes mágicos. Tais referiam-se também à familiaridade com os dragões e vidas extraordinariamente longas. Velhas histórias que ecoavam ao longo do tempo.

Mas não era o momento mais adequado para investigá-las. Constance se certificou uma vez mais de que estava tudo certo, sem empecilhos, sem nada que a atrapalhasse no feitiço. Um calor começou a esquentar seu coração.

A senhora Daenerys precisa do senhor, lorde Aemond, custe o que custar. Do contrário, não é somente a coroa que se perde e um reino que é assaltado pela escuridão, mas uma dinastia que se torna apenas um nome nos livros empoeirados.

Dizendo isso, colocou as mãos sobre a ossada do finado príncipe, morto há 130 anos e começou a murmurar as palavras na língua da velha Valíria. Do contrário, não teria o efeito que almejava. E o fazia com confiança, com fé. Constance estava certa quanto à antiga profecia que jamais chegou à língua comum. Assim, dizia:

"De fogo e sangue reinará

Dinastia destinada a prosperar

Mas tudo que ascende

Também descende

Dragões que não mais rugiram contra o ar

De cinzas e sombras

Novo ciclo recomeça

Avante àquela que veio a cumprir velha promessa

Mas um não basta

O equilíbrio é sempre dois

Mesmo que  voem dragões três

Se o mundo não se perder na escuridão de então

Volta aquele que caiu em vão

A fim de se redimir

Para juntar a dinastia que outrora ajudou a dividir

Assim é, assim será

A palavra de R'hllor se cumprirá

Antes que o mundo se perca para jamais à luz retornar."

E o fim de tudo o que conhecia deveria ser evitado... Mas Constance não estava alheia aos riscos que isto lhe traria. Não era um benevolente Viserys, primeiro de seu nome e frequentemente confundido com um tolo; ou um sábio Daeron que ressurgiria da terra dos mortos.

"Sei que voltará buscando vingança em um mundo onde sua reputação foi apagada e sua existência foi restringida aos velhos pergaminhos, fazendo morada na memória de estudiosos", refletia a sacerdotisa. "Mas é da sua coragem e da sua ousadia que Daenerys Targaryen precisa, meu lorde."

Finalmente, ela deixou as dúvidas serem enterradas para não mais provocarem incertezas tolas e ilusórias. Cumpriria a missão que Melisandre falhou. Não se tratava de príncipes ou princesas prometidos, nem de heróis, mas de salvadores. E o equilíbrio deveria ser restaurado.

Constance professou o feitiço confiantemente, sem nenhum resquício de insegurança. Demorou não mais que um minuto e meio. Por ora, nada aconteceu. Ela aguardou. Em seguida, as luzes emanadas pelas tochas presas às paredes da caverna foram engolidas subitamente pela escuridão, ávida por tal alimento.

"Venha, príncipe. Rh'llor o aguarda", murmurou Constance, ansiosa.

Lá fora, repentina ventania adquiriu força. A luz do sol se escondeu por trás das nuvens, que começavam a retumbar umas contra as outras. Relâmpagos anunciavam tempestade e, para piorar a situação, outro cometa cruzou o céu.

"Algo de sinistro vem aí", anunciou um camponês, que, como todos os outros, fugiram do mercado público e largaram seus ofícios para buscar conforto em seus lares, mesmo reconhecendo em seu íntimo que nada bastaria para o que viesse a seguir.

Não muito longe dali, sacerdotes vermelhos contemplavam a aparição de um cometa. Os que se lembravam do último sorriram:

"O outro nos anunciava os dragões. Mais um virá, certamente. A era draconiana retornará ao seu apogeu."

Ainda que fossem poucos os que compartilhavam daquele entusiasmo, não era possível negar que, sob a ameaça cada vez maior da escuridão, a alternativa de viver sob mais um reinado de dragões era melhor e, quiçá, mais segura. De toda forma, uma guerra era aguardada, por isto a apreensão. Que guerra seria essa, somente os sacerdotes mais experientes poderiam antever. E mesmo assim, se o fizessem era com o consentimento do Deus do Fogo, que somente mostrava alguns vislumbres do que os aguardava.

O prenúncio da tempestade eventualmente cedeu. Era somente uma ventania, ou assim julgavam boa parte da população de Essos, que respirava aliviada. Mas, na caverna onde a feiticeira de Rh'llor fazia de seu templo, acontecimento mais importante se realizava.

Em carne e osso, com as duas vistas, deitava sobre dura e fria mesa de pedra o outrora príncipe Aemond Targaryen. Arrancado do conforto da terra dos mortos, ele respirava e arfava novamente em seu velho corpo.

"O-Onde estou?", ele exclamou, aterrorizado.

Enquanto se levantava, nu, sentia-se como um bebê que aprendia a caminhar e a identificar suas próprias emoções e sensações. Fitava a única mulher que não era a amante que havia deixado para trás, mas uma sacerdotisa em vestes estranhas que o sorria como se o conhecesse.

"Bem-vindo de volta, lorde Aemond. O mundo o aguarda."

A Ascensão dos DragõesWhere stories live. Discover now