Nero

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Meu mundo girou por causa dela.

Literalmente.

Eu sou vazio.

Oco.

Não há nada nesse mundo que me faça sentir qualquer tipo de emoção. Me disciplinei para não as sentir. Não passam de distrações para os meus objetivos. No entanto, no dia que meu nariz tocou o chão do ringue, foi como se tudo emergisse de uma maneira catastroficamente incontrolável.

Uma garota.

Eu lembro de não fazer nada. De ficar apavorado no tablado enquanto ela se ajoelhava ao meu lado e dizia:

— Você está bem? — Ela devia ter tirado a luva, pois senti seus dedos cálidos contra a minha pele. — Nero?

E me chamou pelo primeiro nome. Como se fosse natural.

Eu tremi de raiva. Com um golpe violento, a afastei, empurrando seu peito. Ela ganhou alguns centímetros de distância e arfou. O grupo de alunos do meu pai correu até nós. Dois me ergueram, mas a maioria chegou perto da garota.

— Batista-chan, está tudo bem? — Fuji disse, preocupado. — Ele te machucou muito?

— E-estou... só preciso... re-respirar...

— O que você tem na cabeça, Nero?! — Meu pai se aproximou do meu ouvido.

— Agora a culpa é minha? — Me desvencilhei com fúria dos rapazes. — Uma garota, pai! Você queria que eu lutasse contra uma garota!

— E daí?

E daí?! — Aumentei o tom de voz. — Você acha que sou ridículo?! Você fez isso para me humilhar! Acha que sou algum tipo de imbecil fraco?

Meu pai tinha um gosto estranho para brincadeiras, mas isso foi longe demais.

Eu inspirei fundo, igual um animal. Tem coisas as quais não suporto, dentre elas ser subestimado. Minha deficiência visual cria um espaço tão grande na mente das pessoas, que elas esquecem que eu vivo muito bem apesar disso.

Chiba sabe e não vejo motivo para o que ele fez.

Não trocamos palavras por alguns dias — como se fosse realmente difícil — nem quando saí de casa essa manhã para o primeiro dia de aula. Peguei uma caixinha de café líquido da vendinha abaixo do nosso apartamento e segui para a Chiyoko.

A cada passada e som das sinalizações nas ruas, a raiva diminuía. É fácil mastigá-la quando estou fora de casa. Parece até mais libertador estar ao ar livre e longe de um apartamento que mais parecia uma caixa compacta. Mas não é. Não para mim.

Essa estoicidade é resultado de anos me controlando. Anos disciplinando meus pensamentos e minha respiração. Anos aprendendo a viver em um mundo onde todos são privilegiados, menos eu. Até meu pai, a pessoa que compartilho do mesmo gene, por algum motivo, não despertou a anomalia que é causa da cegueira na nossa família.

Chiba tentou se explicar inúmeras vezes, até inventou histórias da era feudal. Dizia que descendíamos de uma ramificação de um clã importante e todos que nasciam cegos tinham o destino traçado para se tornarem grandes lutadores e protegerem a família principal. Eu acreditei nisso, por um tempo. Até que vi a vida pacata da minha avó antes de perder totalmente a visão e ela falecer. Ela não passava de uma senhora frágil com olhos opacos e percebi que até a ciência tem suas predileções.

Enfim, suspirei aliviado. Meu coração desacelerou. Consegui conter o monstro que enuviava minha mente desde a semana passada. Também me aproximava da escola. Ouvi o som característico da estação lotada vizinha a Chiyoko e as gargalhadas de inúmeros adolescentes pelo tom de voz.

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