Julie

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As aulas vão começar na semana que vem.

— Você está pirando, Julie. — Repeti para o meu reflexo.

A iluminação do banheiro era melhor do que a do meu quarto. No espelho da farmacinha dava para ver todo e qualquer tipo de anomalia espinhosa.

Olhando para alguns cravos nas minhas sobrancelhas recém-feitas, eu tremia dos pés à cabeça enquanto lágrimas pingavam na pia.

As aulas começam semana que vem.

— Mas por que você não está aqui, papai? — Desabei no vaso sanitário.

Eu me certifiquei de segurar as pontas até Giovana sair. Ela é a madrasta perfeita. Senta, conversa, libera qualquer coisa — desde que não ponha minha vida em risco —, faz questão de estar presente em todos os passos da minha vida; ela é uma verdadeira mãe. Porém, não foi ela que pesquisou e aplicou para cada bolsa de cada escola do Japão. Foi meu pai.

Eu e meu pai, nós dois, estudamos as cidades, calculamos as despesas, visitamos e encorajamos um ao outro quando perdíamos a esperança. Era um sonho nosso estudar fora do país. Um sonho meu que esse país fosse o Japão. Mas agora ele não está aqui.

Então qual o sentido?

"A cada instante, a cada segundo, você respira determinação. Acredite e nada será em vão."

A frase dançou na minha mente. Ele adorava dizer isso, embora afirmasse que a autora da frase foi minha mãe. Maria Serafina descobriu o câncer de mama quando eu tinha três anos. Meu pai disse que esse momento foi o mais assustador da sua vida, mas Serafina só sorriu e aceitou o desafio. Ela tinha uma fé inabalável no cristianismo, religião que herdei. Mas faleceu pouco depois que fiz seis anos. Eu não tenho muitas lembranças dela, mas o seu sorriso é impagável e papai nunca cansava de compará-lo com o meu.

Ele morreu fazia pouco mais de quatro meses. No exato dia que ganhamos a bolsa, seu carro bateu em um caminhão desgovernado. Eu aceitei porque não queria ficar perto de nada que me lembrasse dele. E funcionou, mas algo ainda não está certo.

Era o que queríamos, não é?

Acredite e nada será em vão.

Dei tapinhas ao redor das minhas bochechas.

— Acorda! Acorda! Acorda, acorda, acorda, acorda! — Levantei, sentindo uma leve ardência no rosto. — Você vai fazer isso acontecer! Nada será em vão.

Prendendo o cabelo em um rabo de cavalo alto, lavei o rosto e escovei os dentes. Tomei um sobressalto quando escutei o alarme do celular. Hora do boxe.

Haviam poucas coisas que Gio não abria mão, dentre elas, minhas aulas de pugilismo. Ela conseguia fazer muito bem seu papel de mãe. Nunca reclamei dela e nem vou, mas foi pura sorte eu ter amado o kickboxing no Brasil, do contrário, odiaria fazer essas aulas violentas.

Giovana tem um passado traumático envolvendo abusos sexuais. Ela tem medo que o mesmo aconteça comigo e, embora eu não fosse sua filha de sangue, ela me protegia com unhas e dentes de situações como essas. Não só eu, mas qualquer mulher que ela encontrar pelo caminho. Gio conseguia ser o perfeito exemplo de sororidade e eu não podia admirá-la mais por isso.

Depois de trancar a casa, peguei a bicicleta e desci a colina. Graças a Deus, o clube ficava mais perto do que a escola, embora ainda fosse em Osaka. Todas as pedaladas compensavam mais do que ser julgada como "a forasteira" pelo olhar.

Durante o trajeto, contemplei as cerejeiras prontas para desabrocharem. Faltava tão pouco e eu veria um dos maiores espetáculos da Terra. Só perdia para nosso Ipê Amarelo, vulgo, árvore de cuscuz.

Clube do BoxeOù les histoires vivent. Découvrez maintenant