Amelie

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      Estava debruçada no sofá, uma xícara de café sobre a pequena mesa de centro à minha frente. Suspirei frustrada ao perceber que as grandes doses de cafeína não foram o suficiente para me manter acordada, meus olhos ainda pesavam e minha coluna doía.

       Os lapsos do pesadelo de minutos atrás ainda me assombrando, a sensação vívida dos eventos do que tenho me convencido não passarem de um sonho ruim. Ainda que, agora, com minha mente menos cansada do que estava quando sentei no sofá e tentei me distrair com o que quer que estivesse na televisão e boas xícaras quentes, seja consideravelmente fácil perceber detalhes que não deviam estar lá - Detalhes como corredores e portas que definitivamente não existiam naquela mansão.

      Como em um sonho lúcido pareceu se tratar de uma escolha consciente abrir a grande porta no final do corredor escuro, mas uma parte de mim escolheu recuar diante da neblina espessa e escura que escapava pelas brechas quase como mãos prestes a me agarrar. É como se eu soubesse que havia algo ali, um lugar além. O outro lado.

O som da voz de Olivier me arrancou dos meus pensamentos, por um segundo pensei estar vendo a neblina escapar, mas eu estava acordada.

- Precisamos conversar - Sua respiração ofegante denunciava que ele havia corrido até aqui, o suor fazendo com que os fios de cabelo cada vez mais longos grudassem em sua testa e quase ficassem na frente de seus olhos. Meu irmão definitivamente devia cortar o cabelo antes que vire uma versão menos bonita do príncipe Caspian.

- Parece que viu um fantasma - Acompanhei com os olhos quando Olivier caminhou até a geladeira, pegou uma garrafa de água e se jogou na poltrona. Seus dedos batucando sobre a perna, as mãos trêmulas. Me ajeitei no sofá, a preocupação aos poucos preenchendo a pequena sala.

- Antes da ilha nós não sabíamos metade do que sabemos hoje. A maior parte das pessoas achariam que somos loucos se contássemos sobre o que acontece na ordem, eu me consideraria louco e eu não sei se saber que eu não estou pirando faz eu me sentir melhor ou pior - Tomou um gole de água parecendo desejar que fosse algo mais forte - Você já pensou sobre o Barnabé? Como ele sabia daquelas coisas? Lá na ilha não tinha energia e muito menos acesso a internet, Amelie. Não é como se algo assim fosse fácil de encontrar, né? Caçamos coisas, mas você sabe que a ordem também caça pessoas, pessoas que mexem com a membrana... Você acha que o Barnabé conheceu alguém que ensinou tudo à ele?

- Não sei, Oli. Provavelmente, eu acho. Mas por que pensar sobre isso agora? Foi o Montel? Ele falou alguma merda DE NOVO? - Senti a raiva tomando lugar. A decisão de manter o homem que até então eu chamava de pai, ainda que nunca tenha sequer chegado perto de agir como um, fora da minha vida foi consideravelmente mais fácil do que imaginei que seria.

    Olivier pode tentar se convencer que tudo isso foi culpa da tinta, mas a verdade é que antes mesmo daquela última noite chuvosa que nos condenou a tanto, ele já nos olhava como se fôssemos falhas, ainda que até então não tivesse tido a coragem de dizer isso em voz alta.

    Às vezes, por um segundo ou dois, me pergunto se ele nos odiava. Mas logo esse pensamento se afasta, não havia ódio passeando pelos cômodos da nossa antiga casa e preenchendo o pulmão de Montel em todos os suspiros que ele dava sempre que nos olhava, havia desprezo. E desprezo é muito pior que ódio - E sabíamos disso. Mesmo quando éramos crianças esperando o pai nas apresentações, ainda que soubéssemos que ele não apareceria, como das outras vezes. A velha cadeira vazia ao lado da nossa mãe que mantinha um sorriso sem jeito e sempre uma boa desculpa para esconder o fato de que ele não estava lá porque não se importava. Antes mesmo que soubéssemos o significado da palavra "desprezo" já podíamos senti-la.

- Não, não foi ele exatamente. O pai estava estranho - Revirei os olhos para a palavra - Então eu fui na recepção perguntar se alguém tinha visitado ele...

- Quem visitaria o Montel, Olivier? O diabo querendo reconhecer seus iguais? - Ergui a sobrancelha o encarando, a situação não parecia impossível.

- Não, Amelie. Estava escrito "Aleno" na folha - Me encarou parecendo reconhecer o terror que tomou conta dos meus olhos, parecendo sentir o mesmo.

- Não faz sentido, pelo que a gente sabe, ele não tem muitos parentes e morou quase a vida inteira na ilha - Minha voz parecia distante, confusa.

- Eu sei, e acho que não é um parente, seja lá quem for essa pessoa, sabe do que aconteceu lá e sabe mais do que um civil deveria saber. O pai estava muito puto comigo, com a gente...

- Precisamos saber mais sobre isso, obviamente - O medo percorre meu corpo, quanto realmente queríamos saber? Uma coisa é matar criaturas, outra é caçar seres conscientes, pessoas - Acha que devíamos contar aos outros?

- Agora não - Olivier pareceu ainda mais inquieto, sua expressão foi de medo a preocupação e uma quase agonia - Você sabe onde tá o Milo?

- Deve estar na base com a Ágatha, ele e Miguel têm passado bastante tempo lá. Eles estão bem? Sabe, pareciam doentes lá no bar... - Meu irmão me olhou, mas não parecia estar me encarando. Lembrei da aparência pálida de Milo, lembrei do esforço evidente para levantar a cadeira, lembrei do jogo de bebidas, lembrei dos gritos e de Olivier o abraçando e instantaneamente me senti idiota pela minha pergunta.

- Espero que sim - Disse por fim, depois de longos minutos - Eu preciso ir - Deu um beijo na minha bochecha e saiu quase que correndo

     Pensei sobre a folha de visitas e o nome escrito nela, pensei sobre os sonhos e se eram realmente apenas isso, pensei sobre como seria assustador caçar pessoas. Esoterroristas são seres humanos, afinal. O Gal, por exemplo, é humano - Dante provavelmente faria um comentário sarcástico sobre não ter certeza disso se estivesse aqui.

     A verdade é que até um tempo atrás eu acreditava que existia uma camada separando monstros de pessoas, mas depois da ilha, depois de Barnabé, depois do Montel... Talvez a tinta acabe se encontrando e por vezes se misture, sendo difícil identificar onde o mal começa e o bem termina.
    As linhas entre bem e mal, certo e errado, vida e morte, começo e fim parecem cada dia mais emaranhadas.



...

    Atirei no corpo bestial do último zumbi de sangue. Ele caiu no chão, junto de seus restos dilacerados pelas balas anteriores - Ainda é estranho pensar que isso já foi alguém, é triste, na verdade. Lembro da ilha e dos animais bestiais, e aquilo foi sim assustador, mas nada, absolutamente nada se compara a atirar na criatura que um dia antes era uma pessoa. Recarreguei a arma.

   Ouço som de passos vindo do ambiente mal iluminado a minha frente e instantaneamente levanto a arma em direção ao lugar em questão.

- relaxa, sou eu - Otávio se assusta no primeiro segundo e então sorri fraco - Me livrei do que tinha lá

 Estou constantemente em missões da ordem, o que é contrário às recomendações de Arthur sobre precisar de um tempo para descansar, descansar significa dormir e dormir significa pesadelos. Eu preciso correr o suficiente dos sonhos, do corredor, da maldita porta no fim dele.

 - Abaixa! - Gritei e meu parceiro instantaneamente fez. Esvaziei o pente recentemente carregado na criatura atrás de Otávio, que me encarou com um misto de susto e orgulho

- Tá melhorando com a arma - Sorriu um pouco caminhando até mim. Eu realmente prefiro rituais, mas é inegável a eficiência de um tiro, sem contar, claro, com o fato que minhas armas estão obviamente amaldiçoadas.

- É um dos meus muitos talentos, você sabe.

 Encarei as paredes da velha escola incendiada na qual estávamos, alguns materiais quase completamente queimados e o corpo da criatura, meu corpo gelou ao constatar só então que era pequeno demais para se tratar de um adulto, provavelmente um adolescente - Era uma pessoa.

Estávamos investigando ações Esoterroristas em um colégio estadual, mas acabamos chegando tarde o suficiente para o número de corpos transformados em zumbis de sangue ser consideravelmente doloroso. Quem fez isso é uma pessoa ou um monstro?  

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N/A: Pretendo escrever os outros o quanto antes pra compensar minha ausência. O da Bárbara ia ser um mais leve especial copa, mas como fomos eliminados preciso pensar em outra coisa. Alguma ideia? Não aprofundei muito a missão deles, vocês querem mais de missões assim? Acho que ficou curto, mas tentei passar bastante da essência da Amelie.
Acho que preciso abordar esses passos deles enquanto agentes da ordem.

Uma pergunta: Vocês querem que às vezes eu faça uma descontração, tipo posts  como se fosse no instagram dos personagens ou coisa assim? Eu vi em algumas histórias e gosto bastante, sabe? Mas vocês que decidem!

E se... - O Segredo na ilha RPGWhere stories live. Discover now