Miguel

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Aviso de gatilho

Milo caminhava pelo quarto passando as mãos pelo rosto, a onda de sentimentos parecendo prestes a nos afogar. Às vezes me pego pensando se houve um momento de maré baixa dentro de nós, se houve um segundo de calmaria.

- Você contou a ele? - Sua voz em tom baixo, quase inaudível. Não era uma pergunta e ambos sabíamos, era uma afirmação, parte dele implorando para que as lembranças confusas da noite passada fossem um sonho ruim e a outra pequena parte, uma que ele nunca admitiria para si ou para mim, sentindo um alívio por finalmente não carregar esse peso "sozinho". Ele nunca esteve sozinho, eu sempre estive aqui, mas essa parece ser uma informação facilmente ignorada.

- Eu precisei - Tentei manter minhas palavras firmes, tentei parecer forte.

- Você não tinha o direito, Miguel. Era MEU problema, é MEU problema! - Gritou. A onda de repente me derrubou com plena força e eu me questionei se sabia realmente nadar.

- Direito, Milo? - Me esforcei para alcançar a superfície, lutei contra as ondas fortes de sentimentos: Havia mágoa, raiva, dor e medo. - Não era SEU problema, não é SEU problema. Isso é NOSSO problema. - Gritei com força o suficiente para o mar se agitar ainda mais, o nosso mar. As ondas derrubam Milo também.

- Não, Miguel. Isso é sobre mim. - Se esforçou para se levantar, mas a água parecia mais forte que seus esforços.

- Sempre é sobre você, não é, Milo? Vou te lembrar desse detalhe que você parece ter esquecido: Estamos no mesmo barco. Se você afundar, eu afundo também. Quando você tenta se matar, me mata também. Não ouse falar sobre "direito" quando você NUNCA me perguntou como eu me sentia sobre seu aparente suicídio se negando a tomar a tinta, quando você NUNCA considerou que estava me matando também. - Meus pulmões parecendo enfim funcionais.

- Miguel... - Tentou se levantar mais uma vez novamente sendo derrubado pelas ondas.

- Cala a boca! - Minha garganta doía, a vontade de chorar agora impedindo que os gritos saíssem com facilidade - Eu to cansado, Milo. Cansado de me sentir um intruso em um corpo que também devia ser meu, cansado de tentar aguentar todo o peso porque sinto que preciso sempre ignorar meus sentimentos pra ajudar você com os seus, cansado de te ver agir como se só você estivesse aguentando essa merda. Eu também perdi o nosso pai aquele dia, talvez antes mesmo disso. Eu voltei e ele estava MORTO. Eu não tive a chance de encarar o rosto dele uma última vez porque já havia aquele buraco onde deveria estar o habitual sorriso que me fazia suportar o peso do mundo! Eu também me sinto culpado por não ter salvado ele, Milo. Eu também vi pessoas morrerem naquele dia. Eu também odeio a maldita tinta, odeio que precisemos dela.

- Miguel, eu... - Se levantou com muito esforço.

- Eu também perdi, Milo. Eu perdi nosso pai, o Vagner, a amora, até mesmo a Lívia. E às vezes eu sinto que também perdi a Bárbara porque parte dela também morreu naquele dia, morreu nas escadas da mansão enquanto esfaqueava o faroleiro. Todos morremos um pouco naquele dia, não é? E eu perdi tanto e sei que você também. Eu só não quero te perder, irmão.

- Você não devia ter contado - caminhou até mim.

- E o que eu deveria ter feito, Milo? Assistido você se matar? Eu fiquei aterrorizado nos vendo morrer, vendo o esforço que você fez pra levantar uma cadeira, vendo nosso corpo ceder.  Eu fiquei com tanto medo.

- Eu deveria te agradecer? - Ele riu fraco - Como você acha que eu me senti depois do seu desaparecimento? Como você acha que eu me senti vendo a forma como a Bárbara me olhava parecendo me culpar? Como você acha que eu me senti quando o pedrinho falava algo sobre como eu tirei você dele? Eu me senti um intruso nesse corpo também, eu me senti um intruso na ilha. Todas as vezes que eles me olharam sem de fato me ver.

Me perguntei por um segundo se ainda havia algum resquício do meu irmão ali. A forma como ele tentou se fazer indiferente.  Ele teria me matado também, isso importava?

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N/A: Voltei com esse capítulo curtinho com a perspectiva do Miguel. Acho que o Milo precisava MESMO dessa discussão e o Miguel precisava MUITO colocar essas coisas pra fora e isso já é um passo bem grande. 
Gostaram das metáforas com referência ao mar? Lembrei demais dos pesadelos do Milo e quis que isso tivesse um significado maior, sabe? 
Não achei um ritual exato para a separação de corpos sem haver um outro corpo já que o Milo não tinha um, então eles estão trabalhando nisso junto com a Agatha.  Inclusive, na narração do Olivier em que ele fala das anotações no quarto dos irmãos, eram anotações de formas desse ritual.
Odiei o texto, mas tentei passar o máximo de sentimentos deles. Querem mais narrações do Miguel? 

Como está o capítulo pra vocês? Eu o editei e não está atualizando aaa

E se... - O Segredo na ilha RPGWhere stories live. Discover now