Amelie

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     Ouço o sino ecoar mais uma vez. É quase como se o som viesse de dentro. Meu peito dói enquanto caminho até a porta da igreja. Meus pés parecem ter vida própria. Meus dedos tocam a maçaneta gelada e posso sentir um calafrio percorrer toda minha espinha. Penso em correr. Se eu fugir agora, talvez nada disso se torne real, afinal - Lembro-me vagamente de uma teoria mencionada por uma professora durante uma aula na qual eu não estava realmente prestando atenção. Era algo sobre se um gato estivesse preso em uma caixa com veneno (ou alguma coisa assim) e como se enquanto você não abrisse a caixa existiriam duas realidades: Uma em que o gato está vivo e outra em que não está. Talvez se eu não abrisse a "caixa" agora...

"Sempre covarde, não é, Amelie? Uma verdadeira falha. Por isso todos eles vão morrer hoje. É sua culpa." A porta abre com violência como se tivesse sido empurrada.

      Meus pés mais uma vez ignoram os constantes alertas que minha mente tem enviado. Quando me dou conta estou dentro da grande estrutura de adoração que acabara por se tornar a prévia do inferno. Do meu inferno.
O silêncio que permeava o lugar logo foi substituído por gritos de dor e desespero.
        "Amorinha!" Ouço meu irmão gritar e olho para trás. É quase como se eu não fizesse parte da cena, como se eu não fosse nada além de um telespectador. Acompanho seu olhar e então vejo a garota ser arremessada contra uma parede. O som de seu pescoço quebrando ecoa pelo lugar.
Todos vamos morrer.

      As cenas seguintes passam de forma rápida e incoerentemente perenes. Coerência. Parece uma piada pensar sobre isso agora.
     Otávio é consumido pela criatura. Meu peito dói antes mesmo que meu cérebro processe a informação.
    O rosto de Bárbara passa a ser um buraco vazio, assim como seu corpo agora não é nada além de uma casca vazia. Não é ela.
    Wanderley grita algo antes de ser consumido, como Otávio, mas eu não consigo ouvi-lo e tampouco entende-lo. Parece distante. Parece irreal.
    Milo e Miguel somem no vazio da criatura.

Grito. Grito tanto que posso sentir minha garganta doer.

- Amelie... - Uma voz suave cala o sino que ainda ecoava. Abro meus olhos com dificuldade e encontro o olhar preocupado de Otávio. - Você estava gritando de novo. Outro pesadelo?

- O mesmo de sempre. Eu não consigo salvar vocês. E parece tão real... - Meus olhos ardem. - Me desculpa.

- Eu 'to aqui, Amelie. Você me salvou. Você conseguiu. - Ele me abraça forte. Sinto meu corpo finalmente relaxar. Como se todo o peso agora cessasse. Como se o pesadelo da noite passada de repente fosse apenas isso: Um sonho ruim.  Otávio tem dormido comigo desde que comentei sobre os pesadelos e as lembranças que ainda me assombram e provavelmente vão me atormentar por toda a minha vida. É como se toda vez em que fecho os olhos, eu estivesse lá.

- Gosto de quando você diz meu nome assim - Brinco, um sorriso inconsciente aparecendo.

- Como? - Otávio me encara, confuso.

- Do jeito certo. Eu ainda não acredito que você ousou me chamar de Amélia - me esforço para ficar séria.

- Seu nome não é Amélia? - Ele sorri cínico e então suas mãos repousam em minha bochecha antes de me beijar. É calmo. Beijar meu namorado me tira do caos habitual no qual estamos constantemente inseridos.

- Meu deus, que nojo - Olivier grita da porta e o encaramos rindo. Ele cobre os olhos fingindo repulsa enquanto luta contra um sorriso. É reconfortante ver meu irmão sorrir. Ele não tem o feito com frequência desde aquele dia. Milo e ele concordaram que não deviam fazer cópias dos desenhos porque isso tiraria o valor deles e acabaram por enquadrar no apartamento que ambos dividem. É uma forma de ter sempre a amora por perto, imagino. Também adotamos o bisteca, todos nós, ainda que Olivier insista que a guarda é dele, como se ele fosse algum tutor legal do gato ou coisa parecida.

     Estamos na sala e me pego encarando Olivier. Ele insiste em reprimir os próprios sentimentos, mas não é preciso muito esforço para perceber que muito dele ficou na ilha. Ficou nos corredores da maldita mansão, nos quadros, naquela igreja.
     Meu irmão tem visitado Montel algumas vezes enquanto eu me nego permanentemente a isso - Às vezes sinto que parte dele ainda quer acreditar que nosso pai não fez aquilo e a outra parte o odeia por aquele maldito dia. Evandro nos disse que faria nosso pai pagar, mas não acho que nada possa quitar o que aconteceu. Nada vai quitar as vidas que não conseguimos salvar, nada vai quitar todos os dias seguintes ao que aconteceu, nada vai quitar a dor dos que sobreviveram e vem sobrevivendo aquele dia.
    Otávio não é muito diferente disso. Ele não se permite fraquejar. Talvez por medo de que no segundo em que baixar a guarda aquilo vai se repetir. Às vezes ele simplesmente viaja, como se só seu corpo estivesse aqui, mas sua mente está distante. Eu sei onde ele está porque tenho visitado o mesmo lugar com uma frequência dolorosa. Aquele dia. Quantas vidas perdemos? O que mais poderíamos ter feito? E se...

- Credo, Amelie. Por que você tá encarando a gente assim? - a voz de Olivier me acorda.

- Assim como? - Eu poderia ter feito mais?

- Como uma doida.

- Sua irmã é doida, Olivier. - Bárbara força um sorriso enquanto caminha até a varanda com um pequeno regador. Acho que as muitas plantas que estão por TODA parte do apê são uma forma dela se conectar com a Bárbara de antes. 

      Apesar da proposta da minha mãe de morarmos todos juntos em uma cobertura em porto, acabou parecendo uma ideia melhor que Olivier e eu nos mantivéssemos perto da ordem. Talvez fosse o sentimento de que nossas escolhas recentes apresentassem um perigo constante para nossa mãe e parecesse que a decisão mais segura fosse mantê-la a alguns quilômetros. É doloroso, mas não suportaria a ideia de perdê-la permanentemente.
   Meu irmão e eu tiramos no "Ímpar ou par" quem ficaria com o apartamento maior. Como em todos os jogos anteriores, venci. Bárbara e eu ficamos no último andar do prédio enquanto Milo, Miguel e Olivier ficaram um andar abaixo de nós. 



    

E se... - O Segredo na ilha RPGWhere stories live. Discover now