42 | golpes baixos

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Ela ofereceu-me o silêncio como resposta, e eu me concentrei nas gotas leves de chuva que batiam na lataria do carro sem muito ritmo, notando o quão rapidamente o clima havia mudado. Sabia que, ocasionalmente, ficaria tudo bem. A Ayla gostava de mim o suficiente para perdoar em questão de minutos, ainda que tivesse errado bastante, mas poderia ser algo temporário. As pessoas sempre acabavam por cansar-se de perdoar e ignorar. Perguntava a mim mesmo se algum dia tivera gostado do tal do Adonis do mesmo jeito; se sentia o mesmo pelo Hendrix, e se poderia ter sentido pelo Yannick, o qual conhecia por Elliot. Eu estava acostumado a ter toda a sua atenção e empenho depositados em mim e, por isso, pensar que poderia ter se apaixonado por qualquer um deles enquanto eu a tratava de forma desagradável me enchia de desconforto.

Eu não poderia fazê-la sorrir do mesmo jeito, não poderia tocá-la com tanta intimidade, não teria sabido dos seus problemas, e talvez jamais tivesse descoberto como era ter um minúsculo ponto de "paz" em meio a todo aquele caos.

— Tu és mesmo uma criatura diferente das demais... — ela murmurou de forma repentina, iluminando parcialmente o carro quando desbloqueou o celular. Logo, o som das unhas acrílicas e longas batendo na tela uma vez à outra se fez ouvir.

— "Criatura"? — indaguei ao passo que erguia as sobrancelhas. Um relâmpago cruzou o céu e, em seguida, a chuva passou a cair com mais intensidade enquanto trovejava — Que forma interessante de dizeres que não gostas mais de mim.

— Eu gosto, mas deixarei de gostar se o que aconteceu hoje se repetir.

Se ela dizia aquilo sem sequer saber que a abandonei apenas para cheirar pó, não imaginava como ficaria caso descobrisse. Era interessante notar que, apesar de dizer ser independente e consciente do seu valor, a Ayla continuava comigo depois do ocorrido. Ela suportava o que condenava de forma inconsciente, e eu não sabia se era por estar apaixonada por mim, ou por nunca ter sido tratada correctamente por figuras importantes na sua vida. Porque, convenhamos, por mais que surgisse um homem – ou uma mulher, fosse amiga ou não – que a amasse de verdade e a mostrasse o que é ser valorizada, a sua própria mãe, aquela que deveria amá-la antes de qualquer outra pessoa, nunca demonstrou sequer carinho. E, para piorar, ela havia sido abandonada pelo pai.

— Não voltará a acontecer. Eu prometo.

— Espero bem que sim.

— Mas o que tu queres dizer com eu ser "uma criatura diferente das demais"?

— Geralmente, relacionamentos começam de uma forma bastante bonita... Parece tudo um "mar de rosas"... — ela ironizou, mantendo o celular na mão direita enquanto gesticulava aspas — Mas o nosso, por tua causa, está a ser um desastre. É o primeiro dia que passamos juntos, e tu tiveste a audácia, a coragem, de me deixar sozinha a meio do almoço depois de despejar um monte de absurdos pela boca. Para ti, ficar sozinho no quarto foi melhor do que estar comigo... Tu não parecias mais a pessoa que esteve comigo ontem, e eu não sei se vale a pena deixar de estar solteira para passar por isto.

— Eu sei, desculpa.

— O mais estranho — ela disse, sem me dar mais nem um segundo para falar. — foi que eu somente procurei saber se estava tudo bem. Tu não queres partilhar os teus problemas, mas eu falo sobre mim, por mais difícil que isso seja.

— Eu nunca pedi que fizesses isso.

Ela soltou o ar, cética. Eu não estava com paciência para lidar com drama; tinha a cabeça demasiado cheia para tal, e uma das coisas que me fazia evitar entrar em relacionamentos era exactamente isso: discussões toscas. Há dias, eu poderia apenas dizer que não era obrigado a falar sobre absolutamente nada porque tudo o que tínhamos resumia-se em sexo, mas as coisas não eram mais assim.

IDRISWhere stories live. Discover now