Pesadelos

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A cada passo dado via-se minha vida se esvair, fugir de mim, saltar do meu corpo como uma fera atrás de uma caça fresca. Minhas pálpebras lutavam para ficarem abertas, sentia sede, frio e calor ao mesmo tempo. Com uma das mãos sobre a minha barriga e outra nos ombros de Caroline seguimos para um lugar seguro.

O sangue escorria da ferida e descia sobre minha pele. Nestes últimos dias o que mais via era sangue, mas ainda não tinha sentido o meu próprio sangue em abundância, mesmo nessa situação ele é quente, talvez a única coisa quente que percorreu meu corpo por tempos. Queria parar ali, sentar sobre aquela água podre e dormir, entretanto não queria acordar. Morrer e desistir de tudo, não saberia o que fazer se não encontrasse os outros, o meu sentido de vida sumiria no exato momento que confirmasse a morte dos meus irmãos, de Luiza. Por que estamos passando por isso? Quero sentar, não posso andar por mais tempo...

**

O sol quente me fez abrir os olhos, do meu lado Luiza sorria. Percebi que estava com a cabeça em seu colo recebendo cafunes de carinho sobre os fios de meus cabelos. O resplendor de um sorriso como o dela abriu meus olhos como se eles estivessem fechados por muito tempo, tempo demais para que eu não soubesse distinguir onde estava. A sensação de pureza era tanta que suspirei, recebi aquele ar puro em meus pulmões e fiz questão de soltá-los como um trem em andamento. A grama verde que pinicava meus braços, o céu azul que adoro observar e aquelas árvores com folhas verdes de uma cor espetacular, vibrantes cheias de vida. Eu morri? Não sei, mas não queria sair de onde permanecia, aquele carinho recebido era tão aconchegante que fechei os olhos novamente, queria não sair dali.

Lembro-me do meu pai, de quando morei com ele. Os dias passados em sua casa, as brigas, os sorrisos, os concelhos as baladas com meu velho. Lembro de suas palavras serem sempre confortadoras, ele sabia me corrigir quando tirava-o do sério. Por dezenas de vezes tive que ser buscado em lugares indesejáveis, mas consciente de que tudo seria para o meu bem.

Lembranças de meus amigos transbordaram de minha mente, claro. Como esquecer? Sempre esperei eles em minha casa para jogar conversa fora, beber uma bebida e mesmo sabendo que ficaríamos embriagados, não parávamos por nada. Aquela época era muito boa, não temer as consequências. Sentia-se poderoso.

Mas o que me faz mais falta é a correria da vida adulta que começou quando me mudei para a metrópole de São Paulo. Saudades de minha mãe que fazia um café quente e saboroso todas as manhãs, aquele café... As broncas de Dona Mônica por sempre comer andando e atrasado. Sinto falta do calor humano, daquelas aglomerações de pessoas atrasadas para seus trabalhos, asmochiladas que tomei nos vagões dos metrôs. De sair do trabalho as cinco da tarde e correr direto para a Faculdade que começava as seis da tarde, sinto falta disso.

Mas sentir falta de coisas desse tipo é como não ter nada. É lembrar que o mundo está sendo destruído por uma raça desconhecida, é lembrar que podemos ser devorados por monstros. Comecei a sentir frio, percebi que a grama murchara quando apertei ela sobre minha mão, abri os olhos. O céu de azul límpido ficara vermelho sangue, as nuvens cinza e as árvores secas como uvas-passas. Luiza sumira e o que via era meu pai com os olhos da cor de dois tuneis negros e sem vida. Seus dentes decrépitos explodiam em sangue. Gritou em meus ouvidos e então levou sua boca deslocada em meu rosto...

**

— Nic acorde, temos que continuar e sair desse esgoto.

— Onde estou?

— Você desmaiou, e enrolei minha blusa em sua ferida, você perdeu muito sangue. — Retomei meus sentidos ávido de que tudo não passara de um sonho que se tornou pesadelo. Caroline encontrava-se muito debilitada, doía minha alma de vê-la daquele jeito. Ela tremia como se fosse explodir. O frio era nosso maior desafio, a fumaça esbranquiçada que saiam de nossas bocas e narinas denunciava o nosso temor.

Livro I - Nuvens de SangueWhere stories live. Discover now