O protocolo

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2.150 palavras


A notícia com que meu pai chegara na manhã seguinte nos deixou apreensivos e ao mesmo tempo, felizes. Minha mãe é que não parecia contente.

— Assinar a sua demissão foi uma das piores coisas que eu tive que fazer!

A euforia dele bebendo café era um tanto exagerada, já que eu tinha em mente que aquele não era seu jeito habitual de ser.

— Mas para mim, foi a melhor coisa que me aconteceu! – Ele dizia, cortando um pão caseiro grande que eu tinha feito há dois uns dias e enchia de geleia, com tanto gosto, sem resquício algum de culpa.

Minha irmã e eu tomávamos o desjejum discrição, observando aquela interação incomum entre nossos pais.

— Sabe quando você acha que só precisava de um empurrãozinho? – Ele voltou a falar, saboreando o pão. – Eu precisava disso! – Se dirigia a minha mãe num tom de voz como de quem se explicava, buscando compreensão.

— Mas às vezes esse empurrãozinho nos faz cair de cara no chão! – Minha mãe se renegava a aceitar o fato, e sequer havia levado trabalho para a refeição tamanho o seu descontentamento. Era certo que ela não precisava do salário dele para suas coisas pessoais, mas honrava a dignidade dele.

— Eu sei que você não confia em mim profissionalmente, mas quem sabe eu consiga investir em algo próprio...

— Quem disso isso? Eu alguma vez disse? E no que você investiria como um negócio próprio se eu nunca te vi interessado por nada?

— Tá vendo? Vocês estão vendo crianças?

Uns dias antes isso se transformaria numa briga sem freio, que faria com que minha irmã e eu nos retirássemos para nossos quartos ou os dois para o quarto dela. Entretanto, naquela manhã, parecia mesmo algo mais ameno, harmonioso. Meu pai não era o mesmo, estava despojado. E minha mãe também estava diferente, dedicava a ele toda a sua atenção.

— Não é questão de não acreditar em você! Eu penso que se com emprego você vivia triste, imagina agora...

Ele pegou a mão dela e suspirou, olhando-a profundamente, o que a fez inspirar o ar com intensidade.

— Não era o trabalho em si que me entristecia, nós dois sabemos disso. – Ele disse, por fim.

Minha mãe baixou os olhos envergonhada, trazendo a xícara de café de encontro aos lábios, mas meu pai continuava a estuda-la.

— Mas assim como o meu emprego, ficou para trás.

Minha mãe conseguiu sorrir depois que meu pai dissera aquelas palavras.

— Mais tarde vou dar uma saída... – ele tornava a falar – olhar as possibilidades, respirar ar puro, ir à praia, vou pensar no que fazer. Há muito pelo quê posso me apaixonar.

— Apaixonar? – Minha mãe o olhava com admiração, mas com brincadeira na voz. – Não sendo por outra, tudo bem...

Foi um momento em que nós quatro conseguimos compartilhar uma risada, uma leveza que eu não tinha recordação alguma até então.

— Se eu soubesse fazer arte como o que meu filho faz, eu sairia a vender na praia...

Mais uma vez rimos do que o meu pai dissera e minha irmã tinha deixado o celular ao lado dela, vibrava, mas ela não se ocupava em verificar as notificações. Suas unhas amarelas só eram vistas erguendo a xícara de café. Percebendo isso, pedi licença a eles para me retirar.

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