O almoço

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2.434 palavras


Era quase meio-dia e o meu dever era retirar a panela com feijoada de dentro da geladeira e outra panela que continha um arroz com couve e carne moída que estava com uma cara deliciosa.

Feito isto, dispus os quatro pratos na mesa redonda da cozinha, aonde sempre almoçávamos. Fui ao quintal, atravessando uma estradinha feita de pedaços mistos de azulejos antiderrapantes, que meu pai tinha demorado meses para finalizar. Fui colher laranjas de um pé mais baixo que eu, mas que dava frutas doces e suculentas, pequenas e perfeitamente esféricas, com tonalidade esverdeada. Era uma laranja única, numa árvore malformada e esquisita. E mesmo assim, não era perfeita. Colhia sempre exatamente quatro para fazer um suco para almoçarmos.

Era o último dia no ano que eu prepararia o cenário para quando minha família chegasse. Apesar de ter aquele período relativamente longe de férias, era o momento que eu tinha para estar junto de todos eles, era o momento em que brincávamos, não todas as vezes, mas era a oportunidade para isso. Era o único momento do dia em que ficávamos os quatro no mesmo recinto, ainda que por alguns breves minutos.

- Isso é importante pra você, não é? - Aquele ser ainda me persegui enquanto eu fazia as coisas.

- Eu gosto de almoçar com eles. - Respondi, atarefado espremendo as laranjas. - Nós conversamos, rimos, antes de meus pais voltarem pro trabalho e minha irmã ir se trancar no quarto o dia inteiro. Ela diz que é para estudar os conteúdos do curso que ela faz pela manhã...

- E você não quis estudar durante as férias?

- Não. Eu quis dar atenção pros desenhos que eu gosto de fazer.

- São boas ideias as que você põe no papel.

- Ah, claro... você viu isso também, com certeza... - terminei de espremer as laranjas e joguei as cascas e os bagaços na lixeira antes vazia.

- Foi uma pergunta.

Olhei para o ser, sem entender.

- Não pareceu uma pergunta... - disse.

- Desculpe. Mas pode me responder?

Enquanto lava o espremedor, pensava numa resposta. Nem eu mesmo sabia definir o que eu sentia quando desenhava.

- Eu gostaria muito de vê-los. - A pessoa disse.

- Mas você não é... - fiz aspas no ar com minhas mãos molhadas - aquele que tudo vê? - e o indaguei ironicamente, sem fita-lo.

- Mas não vejo o que ainda não existe... posso te ver desenhando, presenciar seu processo criativo.

- Você já me parece bem criativo, atuando com toda essa pose e... - Olhei para ele escondendo minha constante admiração. - Se caracterizando desse jeito bizarro, numa mistura de grey com reptiliano...

A coisa riu.

- Greys e reptilianos - riu um pouco mais. Um riso genérico, como se imitasse alguém. - Não há como negar a criatividade que vocês ti... que vocês têm. - e ficou com a expressão séria abruptamente.

- Vocês... - desdenhei. - Ter um superpoder te faz super-humano, mas não superior a outros seres humanos...

- De jeito nenhum. Somos mais parecidos do que você pensa.

Sem dúvida, não ter pelos ou cachos rebeldes me livraria de boas desculpas para o bullying. Ter aqueles olhos talvez me deixasse mais bonito e aquele queixo furado, as garotas costumavam achar sexy. Mas claro que não casava com aquelas maçãs do rosto tão destacadas e isso lógico causaria estranheza entre as pessoas "normais" que eu convivia. E se eu realmente tivesse algo parecido com aquele ser gostaria de ter aquela retórica tão segura e a forma de proferir as palavras tão clara e pausadamente, para as apresentações de trabalhos escolares ou quando fosse conversar com uma garota, não travaria. Era inconcebível ter algo a ver com aquele ser, mas do jeito que ele falou e levando em conta o fato da não-existência de seu dedo mindinho do pé, a hipótese de ele ser um viajante do tempo, um parente distante, um descendente meu que teria voltado ao passado para me alertar sobre algum acontecimento terrível, estava sendo reforçado cada vez mais. O que justificaria sua habilidade em desaparecer. Obviamente, centenas de anos no futuro, uma capa de invisibilidade inspirada em Harry Potter, já seria uma corriqueira realidade, bem como teletransporte, carros voadores, erradicações de doenças hoje em dia incuráveis, inteligências artificiais... Porém, me intrigava o fato de ele viajar no tempo para avisa algo grandioso a uma pessoa tão comum. Algo que, por mais terrível que fosse para mim, seria insignificante para a humanidade como um todo. Se era possível uma viagem no tempo tão longínqua, o que custaria ele voltar mais centro e trinta e um anos, para a Alemanha e estrangular o bebê Adolf Hitler?

CRIATURAWhere stories live. Discover now