O encontro

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3.080 palavras

Eu estava sozinho.

No meu último dia de férias o que menos me incomodaria seria aquele sol ardendo em meu rosto. Minha mãe adorava deixar a cortina escancarada da janela do meu quarto para que eu acordasse mais cedo do que pretendia e sequer nas férias tinha me poupado.

E eu acordava, ia para a cozinha na esperança de não haver nada que eu precisasse fazer. Mas alguma ou outra tarefa era inevitável: alguma louça, pano para encerar o piso da casa e a lavadora de roupas já no ponto para que eu ligasse, tal qual a lavadora de louças. Era tudo automatizado e eu costumava por nos últimos estágios de lavagem para não ter que calcular qual seria o ciclo ideal a programar.

Minha tarefa era pôr todo o lixo da casa para fora, e em cada um dos cômodos havia uma lixeira transbordando. Das coisas mais fúteis, naturalmente.

No meu quarto, havia uma grande quantidade de caixas de achocolatado, latinhas de refri, papéis de bala, embalagens de salgadinhos e biscoitos, papéis e mais papéis amassados com as ideias que eu transformava em desenhos que, primeiramente eu as achava estupendas, mas no dia ou no minuto seguinte as achava completas aberrações.

Na lixeira da sala, havia o "DNA" de todos da casa: meus lanches e bobagens, os cigarros e latas de cerveja do meu pai, algodões sujos de acetona e esmalte bem como vidros vazios de acetona e de esmalte, de minha irmã. E de minha mãe, a própria lixeira, sempre no mesmo lugar aonde meu pai sempre estava sentado para assistir seus programas esportivos e noticiários na TV. Ele era o que mais tempo ficava naquele sofá, em transe, raramente consciente de nossas presenças.

No banheiro, nem preciso descrever as coisas que haviam. Mas neste dia em especial, meu último de férias, dei uma atenção exclusiva para aquela parte da tarefa, inconscientemente, sendo que, nas minhas memórias buscava fazer isso o mais rápido possível.

Quanto ao lixo da cozinha, minha mãe fazia questão de fazer ela mesma do jeito dela, pois a cozinha era o seu lugar. Não de forma sexista, mas porque minha mãe gostava de se sentir útil dentro de casa. Algo que eu particularmente não entendia, afinal, ela trabalhava mais que meu pai, recebia um salário mais alto que o dele e mesmo assim, ela achava não fazer o bastante por nós.

Por fim, eu precisava tirar do porão tudo que fosse lixo, embora meu pai gostasse de guardar por lá coisas que talvez viesse a precisar. Pedaços de madeira, de tábua, remendos e mais remendos de fio, aparelhos elétricos antigos que ele próprio tentava de várias maneiras arrumar para não gastar em profissionais para consertá-los. E como já haviam todos passado da garantia, ele vivia a bradar: As coisas só estragam depois que acaba a garantia! Deviam ter prazo de validade e não de garantia!

E, por um instante, pensei estar vendo ele em pé diante de sua "mesa de operações" no porão no momento em que desci o primeiro degrau da escada e levei a mão ao interruptor para ligar a lâmpada incandescente, que lançou sua luz amarelada sobre um sofá vermelho desbotado a minha direita, sobre uma geladeira velha e sem porta ao lado do sofá que virara estante de ferramentas, sobre as paredes verde-água com a pintura descascando, sobre a basculante no nível da calçada, sobre o piso de cimento cru e desagradavelmente úmido...

E sobre aquele ser diante dos meus olhos.

Aparentemente sem definição e sobre algo detrás dele que sumiu numa fração de segundo sem que eu conseguisse identificar o que era. E nem mesmo aquela pessoa, ou entidade ou que quer que fosse e já parecia estar ali me observando por minutos a fio. Ou até mesmo horas. Pois a dúvida pairava no ar.

Eu não a conhecia, nunca tinha visto aquela pessoa na minha vida, não havia registro algum sobre ela nas minhas memórias, nem de algum dia ter visto algo ou alguém com uma aparência tão frágil, um rosto tão pálido e único, que misturava traços caucasianos e indígenas: seus ossos zigomáticos tão largos destoavam do formato pontudo e bifurcado de seu queixo e de lábios finos e rosados repletos de acentuadas listras verticais azuladas. E os olhos arregalados, tão perfeitamente redondos, luminosos e curiosos, me observando de cima a baixo com avidez, mas com uma acertada descrição. E aqueles olhos eram cinzas. Estranhamente cinzas. Profundamente cinzas. E uma pupila tão negra quanto um buraco negro. Eu parecia estar olhando dentro de uma estrela.

CRIATURAWhere stories live. Discover now